Mario Sergio Conti
O filme ‘12 anos de escravidão’ emociona, mas não pensa nem deixa pensar
O novo filme do diretor Steve McQueen, que estreia amanhã no Rio, recebeu um título em português que, apesar de semelhante ao original, tem sentido diferente. “12 anos escravo” virou aqui “12 anos de escravidão”. Ele conta a vida de um indivíduo que é sequestrado e vendido ilegalmente. Como virou mercadoria, seus donos fazem dele o que querem. No título brasileiro, o indivíduo deixa de ser proeminente: “Escravidão” remete ao sistema econômico que molda uma sociedade. Como não existe escravo sem escravismo, o modelo econômico e social está também presente no filme, embora não seja o seu fulcro. É um sinal dos tempos. Tempos de Barack Obama.
“12 anos de escravidão” é um filme para ganhar prêmios. Já recebeu uma penca deles e é considerado barbada na disputa do Oscar. Tudo nele é admirável, pomposo, solene. A sua sobriedade é esmagadora. Steve McQueen, artista plástico de formação, compõe cada sequência com esmeros de pintor. Não há uma sujeirinha fora do lugar. O objetivo não foi fazer um entretenimento que se acompanha comendo pipoca, e sim um “clássico” que provoca lágrimas. É uma pretensão cabível, e até certo ponto obtida. Isso ocorre em função do tema, do contexto que envolve o filme e do seu naturalismo.
O tema: “12 anos” é o primeiro filme americano sério sobre escravos. Perto dele, “O nascimento de uma nação” e “E o vento levou”, superproduções que marcaram época, são exercícios racistas de edulcoração histórica. Avançou-se no reconhecimento da importância do passado escravista para o presente de assalariamento. A sensibilidade de Hollywood em relação a remorsos nacionais pode ser medida em números: há milhares de filmes sobre a II Guerra Mundial (nos quais os americanos posam de heróis), centenas sobre a invasão do Vietnã (levaram uma surra), bem menos sobre a guerra civil (massacraram-se uns aos outros) e meia dúzia sobre o escravismo (o país foi feito por meio da exploração de africanos).
A escravidão contundente chegou ao cinema em último lugar. “A cabana do Pai Tomás”, de Harriet Beecher Stowe, foi publicado antes da abolição. O romance “Negras raízes”, de Alex Haley, de 1976, provocou comoção no ano seguinte, ao ser adaptado para a televisão numa minissérie de enorme sucesso. O cinema chegou atrasado e por vias tortas: Steve McQueen é inglês e mora na Holanda.
Agora o contexto: o filme se materializa no segundo mandato de um negro na presidência, ainda que Barack Obama não tenha ancestrais escravos. Sua mãe, branca, nasceu no Kansas; o pai, negro, no Quênia. Séculos de luta contra a discriminação o levaram à Casa Branca. Mas Obama se comporta como um presidente tradicional, e não como um político que lidera transformações radicais na vida do povo negro. Ele é mais um símbolo do que um político da estirpe de Martin Luther King ou, noutra linha, Malcolm X.
O protagonista de “12 anos de escravidão”, Solomon Northup, era um homem livre, marido dedicado e pai prestimoso. Conhece a escravidão na carne quando é posto para trabalhar na roça. Começa a sua degradação: surras diárias de açoite, traição e desespero. Vira uma besta de carga. Tem que esconder que sabe ler para que os seus donos não percebam que é semelhante a eles. A sua astúcia é a de conformar-se, ao mesmo tempo em que mantém intacta (para usar uma expressão hollywoodiana) a dignidade de ser humano. Até que, por fim, uma boa alma — Brad Pitt... — o escuta e ajuda. Com acordes melodiosos ao fundo, o filme acaba.
Por fim, o naturalismo: o filme tem força, incomoda. Será arte? Ao ter que expor uma exploração atroz, Steve McQueen dá uma resposta violenta: explora a atrocidade. Para o diretor, a escravidão se manifesta no dilaceramento do corpo dos escravos, e ali deve ser vista. E revolvida. E repetida. Com isso, a brutalidade do filme é de arrepiar, quando não repulsiva. Espancamentos, chicotadas, enforcamentos, estupros — a crueldade física está no âmago de “12 anos de escravidão”. Conduz a narrativa e não sai nunca do primeiro plano.
O sofrimento infligido aos escravos era real. Funcionava como justificativa dos proprietários: como escravo é inferior aos brancos, deve ser espancado e humilhado até aprender o seu lugar. Como o filme não se distancia da dor física, não a pensa, o sadismo encobre tudo em torno, torna-se o elemento central. Só que a associação de prazer e dor nunca foi a substância da escravidão. Nos Estados Unidos, ela foi um modo de apropriação do trabalho. O escravo, mercadoria viva, produzia valor. A perversão sádica, bem como a religiosa, eram construções ideológicas. Ao privilegiar o realismo cru, deixando a inteligência em segundo plano, “12 anos de escravidão” emociona. Mas não pensa nem deixa pensar.
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