Miguel Pinto Guimarães
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Para o arquiteto e urbanista, Lei Seca, insuficiência do transporte público e a escassez de táxis fizeram o povo parar de circular entre os bairros
O ano é 2184. O Rio submerso. Os escafandristas vieram explorar suas
casas, suas coisas, suas almas, desvãos. Encontraram vestígios de estranha
civilização. Estranha e suicida, porque nada explica o efeito catastrófico
da Lei Seca na partição daquela cidade.
A Barra bem que tentou se separar do Rio. Foram alguns plebiscitos
malsucedidos. Pois, lá pela segunda década do século XXI, uma praga chamada Lei
Seca se abateu sobre a cidade e conseguiu separá-la em três regiões. Deus até
que tentou antes. Criou os Maciços da Tijuca, da Pedra Branca e do Mendanha. Fez
o mesmo separando Galápagos em 13 ilhas. Era de interesse do Criador a
diversidade de sua criação. Por preguiça na hora de variar as raças e embaralhar
os genes, afinal já raiava o sétimo dia e Ele precisava descansar, pareceu-lhe
mais fácil criar acidentes geográficos que se encarregassem sozinhos de
pluralizar a biodiversidade.
No entanto, ao contrário dos tentilhões e tartarugas de Galápagos, a raça
carioca não se quedou paralisada. Tão logo a engenharia permitiu, atravessando
os túneis rasgados por Lacerda e Negrão de Lima, tratou de se espalhar e copular
como se não houvesse amanhã. Cresceu e multiplicou-se. Espécies endêmicas
misturaram-se gerando a mais pan das pandemias. Fez-se o Éden na Terra.
Shangri-lá! Uma terra abençoada por Deus e habitada pelo mais apto dos povos, os
cariocas! Uma gente bonita, bacana, sacana, dourada. Tão bambas, tão craques,
tão sexies, tão claros. Ah! Darwin ficaria orgulhoso da raça miscigenada que
surgiu a Oeste da Guanabara.
Tudo ia bem quando a Lei Seca foi instaurada, com efeitos devastadores sobre
a economia e a população. Tal qual nos tempos que se sucederam ao Crack da Bolsa
de 29, foi a vez de o Rio sofrer o que os historiadores convencionaram chamar de
A Grande Depressão dos Trópicos. Bares e restaurantes fecharam do dia para a
noite. A taxa de ocupação dos hotéis despencou vertiginosamente, destruindo
décadas de investimento em transformar o Rio de Janeiro em um dos principais
destinos do turismo internacional. Os Jogos Olímpicos foram cancelados e
transferidos às pressas para Munique, considerada, à época, a capital da
cerveja. A boemia, celeiro de bambas como Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Noel
Rosa, expoentes da cena cultural de outrora, sofreu rápida extinção. Parou-se de
produzir música, teatro, cultura. Proibido de dirigir tendo bebido um mísero
chopinho ou uma taça de vinho, ao que se somavam a insuficiência do transporte
público e a escassez de táxis, o povo, espavorido, parou de circular entre os
diferentes bairros. O sistema viário entrou em colapso. Aqueles mesmos túneis
ruíram por falta de uso e consequente falta de manutenção.
Circunscritos aos seus próprios territórios, os cruzamentos entre indivíduos
das diferentes regiões diminuíram em quantidade e qualidade. O álcool, elemento
combatido pela Praga, afinal sempre foi catalisador do sexo entre os seres
humanos. Fato. A nova e restritiva geografia da cópula foi responsável por
provocar acelerado empobrecimento genético, devido à crescente taxa de
consanguinidade. Genes recessivos dominaram. Doenças, deformidades e gradativas
mutações genéticas involuíram aquela espécie carioca, ramificando-a em três
subespécies distintas que, por seleção natural, foram se adaptando aos novos
habitats.
Fósseis e demais registros arqueológicos encontrados no sítio da Barra da
Tijuca, por exemplo, sugerem seres com os membros inferiores significativamente
mais curtos do que os dos seus ancestrais. Talvez consequência do meio de
locomoção dominante baseado em veículos automotores. Sem a necessidade de
caminhar nem por curtas distâncias (que não existiam naquela região da cidade),
as pernas foram definhando e mantiveram-se na extensão exata necessária apenas
para subir em seus Land Rovers.
Essa raça desenvolveu curiosa mutação no aparelho respiratório. Em todos os
indivíduos estudados, os cientistas encontraram guelras nas axilas. A expansão
torácica responsável pela inspiração passou a acontecer entre um supino e outro,
regida por bíceps e tríceps (malhação era a principal cultura dos habitantes
daquele sítio, que a praticavam durante 18 das 24 horas do dia). Apenas durante
o sono o ar era inspirado pela cavidade nasal. O diafragma, músculo que outrora
comandava o movimento respiratório, teve que assumir novas funções. Passou a
auxiliar os exercícios abdominais, configurando novo gomo muscular nos abdômens
tipo “tanquinho”. Com a interdição do álcool, importante desinibidor de
comportamento, essa mutação passou a configurar um dos principais atrativos da
seleção sexual. Portanto, os indivíduos nos quais o diafragma virou apenas um
órgão vestigial passaram a atrair cada vez menos fêmeas e foram extintos da face
da Terra.
A última, e talvez a mais vital, característica adquirida foi o advento das
células biofotovoltaicas epidérmicas. Semelhantes às escamas répteis, tais
células assumiram o papel de produção da energia. Com o açúcar banido do
cardápio desses humanos de academia alguns anos após o álcool, a glicólise, até
então nossa principal fonte energética, deixou de ser realizada. O corpo humano
entrou em falência, e a população em rápido declínio, até que os primeiros
mutantes apresentassem as erupções epidérmicas capazes de realizar a
fotossíntese! Foi a solução perfeita para que toda a clorofila acumulada nos
organismos alimentados pelo “suco de luz” tivesse alguma utilidade. O que
diferenciava esse novo hominídeo das plantas é que a fonte de luz a ser
metabolizada em energia não era de origem solar, e sim captada dos vidros fumês
multicolores dos edifícios ou da radiação ultravioleta emitida pelo gases
argônio, neon e vapor de mercúrio presentes nos letreiros, luminosos e luzes
fluorescentes dos shopping centers.
Vestígios encontrados no quadrante Sul da cidade indicam a existência da
única subespécie de cariocas que manteve os cinco dedos das mãos. De acordo com
os antropólogos, os dedos eram usados para tocar antigos instrumentos musicais e
manusear livros. Livros eram tablets analógicos com inúmeras telas de origem
vegetal sobrepostas. Com o advento da digitação óptica e mental, um rápido
processo de sindactilia acabou por catalisar, na maior parte da população, a
fusão das falanges em um único dedo, usado basicamente para manusear touch
screens. No entanto, muitos fósseis de indivíduos com os ancestrais cinco dedos
foram encontrados a Norte e Oeste de um antediluviano pântano chamado Rodrigo de
Freitas, mais precisamente nas aldeias Gávea e Jardim Botânico. Junto a esse
fósseis foram encontrados diversos exemplares de livros impressos na extinta
língua portuguesa, que, restaurados, foram recolhidos ao Museu Internacional da
Cultura de Xangai, uma das mais importantes instituições de pesquisas
linguísticas do mundo. Foram aqueles os últimos exemplares em terras
cariocas.
Outra mutação interessante na população daquelas aldeias foi o aumento
considerável do tamanho dos olhos, característica associada também ao hábito da
leitura. Com a falência do setor energético e o aumento dos chamados apagões, os
humanos cariocas voltaram a depender do fogo para realizar tão elementar tarefa.
Sobreviveram os que desenvolveram olhos maiores, capazes de se adaptar à
escuridão, e maior aperfeiçoamento na parte cognitiva do cérebro, responsável
por processar uma quantidade muito maior de estímulos visuais.
Dentre as três subespécies ramificadas, a que mais se assemelhava ao fóssil
de Quitéria — considerado o mais perfeito exemplar da extinta raça carioca,
preservado e exposto no Museu de História Natural da Universidade de Pequim —
foi aquela encontrada na Zona Norte da cidade, não coincidentemente a zona menos
afetada pela praga da Lei Seca. Era a região na qual Afrodites mulatas e Apolos
de ébano circulavam, sem pudores, seus corpos esculturais, embebidos em pinga e
cerveja, balançando com graça ao longo da linha do trem. Da Estação Primeira a
Bento Ribeiro e Oswaldo Cruz. Com samba nos quadris, o balancê e o gingado
daquela gente desinibida mantiveram a libido em alta e foram as características
hereditárias responsáveis pela evolução daquela subespécie, que atingiu o seu
esplendor justamente no fatídico verão da década passada, quando a inversão do
vórtex polar derreteu em definitivo as calotas geladas.
A súbita elevação do nível do mar — combinada com as torrenciais chuvas que
castigaram o Hemisfério Sul durante quarenta dias e quarenta noites — inundou
nações inteiras, exterminando-as do mapa. Todas as cidades litorâneas foram
submersas, com exceção da capital do mundo e sede da ONU, Xangai. A maior
potência do planeta reuniu a tempo sua mão de obra ociosa e transmutou parte da
Muralha da China, transformando-a em um extenso dique com 350 milhas de extensão
ligando a costa chinesa à Península Coreana, protegendo assim as cidades da
costa do Mar Amarelo, transformado em plácida represa.
Foi este o fim da tão invejada Civilização Carioca, que reinou absoluta do
lado de baixo do Equador. A História das civilizações sofreu inúmeros COLAPSOS.
Epidemias como a Varíola do México ou a Peste Negra na Europa, terremotos como
os da China e erupções como a do Vesúvio fazem parte dos chamados desastres
naturais, sobre os quais a raça humana nunca teve nem nunca terá domínio.
Inclusive devem ser encarados como um mecanismo da própria Natureza para
controle e equilíbrio populacional. Catástrofes geopolíticas riscaram a
civilização Khmer do sudeste asiático. Um ecocídio provavelmente eliminou os
Rapa Nui. A loucura de líderes sanguinários levou a guerras e genocídios como o
de Ruanda.
O inédito caso de autodestruição causada pela Lei Seca, no entanto, é fruto
do espírito inovador e um tanto ou quanto suicida do CARIOCA.
*Miguel Pinto Guimarães é arquiteto e urbanista. O texto em itálico é inspirado em versos da música “Futuros amantes”, de Chico Buarque
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