sexta-feira, 14 de março de 2014

Artigo de Opinião - O colapso da Civilização Carioca

Miguel Pinto Guimarães granderio@oglobo.com.br


Para o arquiteto e urbanista, Lei Seca, insuficiência do transporte público e a escassez de táxis fizeram o povo parar de circular entre os bairros

O ano é 2184. O Rio submerso. Os escafandristas vieram explorar suas casas, suas coisas, suas almas, desvãos. Encontraram vestígios de estranha civilização. Estranha e suicida, porque nada explica o efeito catastrófico da Lei Seca na partição daquela cidade.
A Barra bem que tentou se separar do Rio. Foram alguns plebiscitos malsucedidos. Pois, lá pela segunda década do século XXI, uma praga chamada Lei Seca se abateu sobre a cidade e conseguiu separá-la em três regiões. Deus até que tentou antes. Criou os Maciços da Tijuca, da Pedra Branca e do Mendanha. Fez o mesmo separando Galápagos em 13 ilhas. Era de interesse do Criador a diversidade de sua criação. Por preguiça na hora de variar as raças e embaralhar os genes, afinal já raiava o sétimo dia e Ele precisava descansar, pareceu-lhe mais fácil criar acidentes geográficos que se encarregassem sozinhos de pluralizar a biodiversidade.
No entanto, ao contrário dos tentilhões e tartarugas de Galápagos, a raça carioca não se quedou paralisada. Tão logo a engenharia permitiu, atravessando os túneis rasgados por Lacerda e Negrão de Lima, tratou de se espalhar e copular como se não houvesse amanhã. Cresceu e multiplicou-se. Espécies endêmicas misturaram-se gerando a mais pan das pandemias. Fez-se o Éden na Terra. Shangri-lá! Uma terra abençoada por Deus e habitada pelo mais apto dos povos, os cariocas! Uma gente bonita, bacana, sacana, dourada. Tão bambas, tão craques, tão sexies, tão claros. Ah! Darwin ficaria orgulhoso da raça miscigenada que surgiu a Oeste da Guanabara.
Tudo ia bem quando a Lei Seca foi instaurada, com efeitos devastadores sobre a economia e a população. Tal qual nos tempos que se sucederam ao Crack da Bolsa de 29, foi a vez de o Rio sofrer o que os historiadores convencionaram chamar de A Grande Depressão dos Trópicos. Bares e restaurantes fecharam do dia para a noite. A taxa de ocupação dos hotéis despencou vertiginosamente, destruindo décadas de investimento em transformar o Rio de Janeiro em um dos principais destinos do turismo internacional. Os Jogos Olímpicos foram cancelados e transferidos às pressas para Munique, considerada, à época, a capital da cerveja. A boemia, celeiro de bambas como Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Noel Rosa, expoentes da cena cultural de outrora, sofreu rápida extinção. Parou-se de produzir música, teatro, cultura. Proibido de dirigir tendo bebido um mísero chopinho ou uma taça de vinho, ao que se somavam a insuficiência do transporte público e a escassez de táxis, o povo, espavorido, parou de circular entre os diferentes bairros. O sistema viário entrou em colapso. Aqueles mesmos túneis ruíram por falta de uso e consequente falta de manutenção.
Circunscritos aos seus próprios territórios, os cruzamentos entre indivíduos das diferentes regiões diminuíram em quantidade e qualidade. O álcool, elemento combatido pela Praga, afinal sempre foi catalisador do sexo entre os seres humanos. Fato. A nova e restritiva geografia da cópula foi responsável por provocar acelerado empobrecimento genético, devido à crescente taxa de consanguinidade. Genes recessivos dominaram. Doenças, deformidades e gradativas mutações genéticas involuíram aquela espécie carioca, ramificando-a em três subespécies distintas que, por seleção natural, foram se adaptando aos novos habitats.
Fósseis e demais registros arqueológicos encontrados no sítio da Barra da Tijuca, por exemplo, sugerem seres com os membros inferiores significativamente mais curtos do que os dos seus ancestrais. Talvez consequência do meio de locomoção dominante baseado em veículos automotores. Sem a necessidade de caminhar nem por curtas distâncias (que não existiam naquela região da cidade), as pernas foram definhando e mantiveram-se na extensão exata necessária apenas para subir em seus Land Rovers.
Essa raça desenvolveu curiosa mutação no aparelho respiratório. Em todos os indivíduos estudados, os cientistas encontraram guelras nas axilas. A expansão torácica responsável pela inspiração passou a acontecer entre um supino e outro, regida por bíceps e tríceps (malhação era a principal cultura dos habitantes daquele sítio, que a praticavam durante 18 das 24 horas do dia). Apenas durante o sono o ar era inspirado pela cavidade nasal. O diafragma, músculo que outrora comandava o movimento respiratório, teve que assumir novas funções. Passou a auxiliar os exercícios abdominais, configurando novo gomo muscular nos abdômens tipo “tanquinho”. Com a interdição do álcool, importante desinibidor de comportamento, essa mutação passou a configurar um dos principais atrativos da seleção sexual. Portanto, os indivíduos nos quais o diafragma virou apenas um órgão vestigial passaram a atrair cada vez menos fêmeas e foram extintos da face da Terra.
A última, e talvez a mais vital, característica adquirida foi o advento das células biofotovoltaicas epidérmicas. Semelhantes às escamas répteis, tais células assumiram o papel de produção da energia. Com o açúcar banido do cardápio desses humanos de academia alguns anos após o álcool, a glicólise, até então nossa principal fonte energética, deixou de ser realizada. O corpo humano entrou em falência, e a população em rápido declínio, até que os primeiros mutantes apresentassem as erupções epidérmicas capazes de realizar a fotossíntese! Foi a solução perfeita para que toda a clorofila acumulada nos organismos alimentados pelo “suco de luz” tivesse alguma utilidade. O que diferenciava esse novo hominídeo das plantas é que a fonte de luz a ser metabolizada em energia não era de origem solar, e sim captada dos vidros fumês multicolores dos edifícios ou da radiação ultravioleta emitida pelo gases argônio, neon e vapor de mercúrio presentes nos letreiros, luminosos e luzes fluorescentes dos shopping centers.
Vestígios encontrados no quadrante Sul da cidade indicam a existência da única subespécie de cariocas que manteve os cinco dedos das mãos. De acordo com os antropólogos, os dedos eram usados para tocar antigos instrumentos musicais e manusear livros. Livros eram tablets analógicos com inúmeras telas de origem vegetal sobrepostas. Com o advento da digitação óptica e mental, um rápido processo de sindactilia acabou por catalisar, na maior parte da população, a fusão das falanges em um único dedo, usado basicamente para manusear touch screens. No entanto, muitos fósseis de indivíduos com os ancestrais cinco dedos foram encontrados a Norte e Oeste de um antediluviano pântano chamado Rodrigo de Freitas, mais precisamente nas aldeias Gávea e Jardim Botânico. Junto a esse fósseis foram encontrados diversos exemplares de livros impressos na extinta língua portuguesa, que, restaurados, foram recolhidos ao Museu Internacional da Cultura de Xangai, uma das mais importantes instituições de pesquisas linguísticas do mundo. Foram aqueles os últimos exemplares em terras cariocas.
Outra mutação interessante na população daquelas aldeias foi o aumento considerável do tamanho dos olhos, característica associada também ao hábito da leitura. Com a falência do setor energético e o aumento dos chamados apagões, os humanos cariocas voltaram a depender do fogo para realizar tão elementar tarefa. Sobreviveram os que desenvolveram olhos maiores, capazes de se adaptar à escuridão, e maior aperfeiçoamento na parte cognitiva do cérebro, responsável por processar uma quantidade muito maior de estímulos visuais.
Dentre as três subespécies ramificadas, a que mais se assemelhava ao fóssil de Quitéria — considerado o mais perfeito exemplar da extinta raça carioca, preservado e exposto no Museu de História Natural da Universidade de Pequim — foi aquela encontrada na Zona Norte da cidade, não coincidentemente a zona menos afetada pela praga da Lei Seca. Era a região na qual Afrodites mulatas e Apolos de ébano circulavam, sem pudores, seus corpos esculturais, embebidos em pinga e cerveja, balançando com graça ao longo da linha do trem. Da Estação Primeira a Bento Ribeiro e Oswaldo Cruz. Com samba nos quadris, o balancê e o gingado daquela gente desinibida mantiveram a libido em alta e foram as características hereditárias responsáveis pela evolução daquela subespécie, que atingiu o seu esplendor justamente no fatídico verão da década passada, quando a inversão do vórtex polar derreteu em definitivo as calotas geladas.
A súbita elevação do nível do mar — combinada com as torrenciais chuvas que castigaram o Hemisfério Sul durante quarenta dias e quarenta noites — inundou nações inteiras, exterminando-as do mapa. Todas as cidades litorâneas foram submersas, com exceção da capital do mundo e sede da ONU, Xangai. A maior potência do planeta reuniu a tempo sua mão de obra ociosa e transmutou parte da Muralha da China, transformando-a em um extenso dique com 350 milhas de extensão ligando a costa chinesa à Península Coreana, protegendo assim as cidades da costa do Mar Amarelo, transformado em plácida represa.
Foi este o fim da tão invejada Civilização Carioca, que reinou absoluta do lado de baixo do Equador. A História das civilizações sofreu inúmeros COLAPSOS. Epidemias como a Varíola do México ou a Peste Negra na Europa, terremotos como os da China e erupções como a do Vesúvio fazem parte dos chamados desastres naturais, sobre os quais a raça humana nunca teve nem nunca terá domínio. Inclusive devem ser encarados como um mecanismo da própria Natureza para controle e equilíbrio populacional. Catástrofes geopolíticas riscaram a civilização Khmer do sudeste asiático. Um ecocídio provavelmente eliminou os Rapa Nui. A loucura de líderes sanguinários levou a guerras e genocídios como o de Ruanda.
O inédito caso de autodestruição causada pela Lei Seca, no entanto, é fruto do espírito inovador e um tanto ou quanto suicida do CARIOCA.



*Miguel Pinto Guimarães é arquiteto e urbanista. O texto em itálico é inspirado em versos da música “Futuros amantes”, de Chico Buarque

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