A Inconfidência sem fantasia
Livro de Pedro Doria sobre a Conjuração Mineira mostra que os fatos podem ser mais cativantes que a mitologia em torno do tema
Por Bolívar Torres
Ao longo dos séculos, a Inconfidência Mineira passou por percepções históricas conflitantes. Foi abafada pela coroa portuguesa logo após seu fracasso, em 1789; romantizada pelos republicanos, que encontraram na figura de Tiradentes o grande herói da pátria; e, finalmente, desconstruída pelos historiadores modernos, que divergem sobre a real importância do movimento.
Quando decidiu se debruçar sobre a revolta que quase mudou o país, o jornalista Pedro Doria, editor-executivo do GLOBO, tinha consciência de que precisaria lidar com lacunas, contradições e distorções. Mas ele não fazia ideia de que os fatos documentados podiam ser ainda mais cativantes do que a mitologia que envolve o movimento. Em seu livro “1789”, já disponível em formato digital pela Nova Fronteira e com lançamento físico previsto para os próximos dias, ele reconstrói a trajetória dos conspiradores que sonharam com uma revolução liberal no Brasil, mas sem abrir mão do rigor histórico. Nos documentos oficiais, como os inquéritos dos “Autos da devassa”, encontrou material suficiente para uma trama repleta de peripécias.
— O historiador busca descobertas e novas interpretações. Já o meu trabalho aqui é diferente: quero contar uma história da forma mais agradável possível — explica o jornalista, também autor de “1565 – Enquanto o Brasil nascia” (Nova Fronteira). — Acho que o país hoje já tem a maturidade para entender as coisas como elas são. Vivemos numa sociedade que não precisa mais transformar seus heróis em mito. Um país que não precisa de heróis perfeitos.
Uma Inconfidência sem floreios romanescos está à mostra em “1789”. A história por si só já traz doses de ação, aventura, sexo, romance e espionagem, com uma miríade de personagens fortes. Tiradentes é figura central, mas não a principal. O alferes dos Dragões de Minas se desenha como um Tiradentes possível: não é o mais culto dos rebeldes, mas está longe do inocente útil pintado por alguns revisionistas. Tinha mais dinheiro do que muitos de seus parceiros de Inconfidência, mas também não era rico. O congelamento social em que se encontrava, porém, pode ter sido uma das motivações para sua intensa participação no movimento. O livro traz ainda o primeiro retrato presumido do alferes, feito a partir das descrições de quem o conheceu: com um bigode militar substituindo a barba bíblica imaginada pelos republicanos.
Revolução liberal
Na trama, Tiradentes divide o protagonismo com outros idealizadores da revolta, como os poetas Inácio José de Alvarenga Peixoto, Tomás Antonio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, o cônego Luis Vieira da Silva, os padres José da Silva e Oliveira Rolim e Carlos Correia de Toledo, entre outros entusiastas das ideias iluministas do período. Leitores de Voltaire e Montesquieu, eram personalidades eloquentes e cultas, mas também contraditórias: afinal, exibiam diversos vícios do regime que tentavam combater. Mesmo assim, formavam “uma turma sofisticadíssima”, segundo o autor.
Doria costura a trajetória dos personagens numa rede complexa, composta por intelectuais, contrabandistas, criminosos e poetas. Nela, misturavam-se interesses econômicos e pessoais, estratégias pragmáticas e românticas. As ligações perigosas se estendiam até as embaixadas de Washington e Paris, nos encontros secretos no sul da França entre o inconfidente José Joaquim Maia e o diplomata Benjamin Franklin, uma das cabeças por trás da Revolução Americana.
Segundo Doria, a Inconfidência poderia ter provocado a primeira revolução liberal da América do Sul, e apenas a terceira do período, junto com a Americana (1776) e a Francesa (1789). Seria uma revolução conquistada nos campos de batalha, com pais fundadores, que teriam que administrar seus próprios conflitos, além de debater uma constituição e enfrentar questões como escravidão e representatividade política.
Um cenário muito diferente do 7 de setembro de 1822, quando o Brasil foi “presenteado” com uma independência proclamada por um futuro rei. Não se sabe muito bem quais eram as ideias dos inconfidentes, mas o jornalista tem certeza de que uma vitória dos rebeldes teria mudado completamente a cara do país.
— Provavelmente seria algo atrapalhado, assim como aconteceu nos Estados Unidos, que só foi se tornar uma verdadeira potência depois da Primeira Guerra — lembra ele. — Porém o mais importante é que seria uma revolução nossa. Teríamos lutado numa guerra para conquistá-la, fundando uma república jovem no momento em que se inventava o que é ser uma república. Não sei que solução eles encontrariam, mas teríamos o marco fundador de uma democracia liberal, no sentido de que uma nação deve ser responsável pelo seu próprio governo. Isso era um conceito muito radical, e estaria incrustado na história da nossa independência. Não temos na nossa independência este valor forjado a fogo. E acho que é isso que nós perdemos na Inconfidência.
De acordo com Doria, a Inconfidência fascina “pelo sonho do Brasil que poderia ter sido”. Por isso se tornou símbolo do que consideramos nossas melhores características.
— Não é à toa que sempre revisitamos a Inconfidência nos momentos de transição do país — observa.
O Globo
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