segunda-feira, 3 de março de 2014

Artigo de Opinião - Quando morre um jornalista - Eugenio Bucci

O assassinato de Santiago Ilídio Andrade, repórter cinegrafista da TV Bandeirantes, é uma tragédia dentro da tragédia. Ele estava no centro do Rio de Janeiro, cobrindo um desses protestos contra o aumento das passagens de ônibus, quando um rojão que soltava faíscas flamejantes para todo lado o atingiu na cabeça. Isso foi no dia 6 de fevereiro, uma quinta-feira fatídica. A imagem da pirotecnia letal ganhou destaque nos noticiários da televisão e em todos os sites da internet. Quanto a Santiago, passou por uma cirurgia e, desde então, permaneceu no hospital em estado gravíssimo até que, na segunda-feira, dia 10, os médicos constataram sua morte cerebral. Morto aos 49 anos, deixou uma filha e três enteados. “Eles destruíram uma família, uma família que era unida, muito unida mesmo”, disse a viúva, Arlita Andrade.
O crime inconcebível que matou Santiago e destruiu sua família não foi somente um homicídio. Não foi somente mais uma cena chocante a gerar audiência nas telas eletrônicas. Não se resumiu a um ato de vandalismo para selar o destino de um cidadão de bem. O gesto que acabou com a vida de Santiago representa mais que isso: vem sinalizar com fogo e com sangue a exacerbação da estupidez e da violência na arena brasileira. Desde quinta-feira, dia 6, e especialmente desde segunda, dia 10, a barbárie que vem ganhando as ruas do país ficou mais bruta e mais irracional do que já era. A boçalidade se expandiu. Uma tragédia dentro da tragédia.

Bem sabemos que o ódio e a intolerância não são uma novidade nessas manifestações que descambam para a arruaça. No ano passado, em Ribeirão Preto, na noite de 20 de junho, um sujeito acelerou seu jipão contra os manifestantes e matou um jovem de 18 anos, Marcos Delafrate. A agressão à imprensa também não é surpresa, infelizmente. Em 2013, outros repórteres já haviam sido insultados, ultrajados, esbofeteados em passeatas. Automóveis de emissoras foram depredados e incendiados. Em nome de desancar essa entidade fantasmagórica, “o poder da grande mídia”, ou algo por aí, há quem acredite que o espancamento de trabalhadores é uma linguagem eficaz. Enfim, havia prenúncios de que cenas piores estavam por vir. Agora, elas começam a chegar. E tudo muda. Para pior.

O rancor que escorre pelas ruas é compreensível. Mas isso não o legitima, muito menos justifica o recurso à violência. É compreensível que a desfaçatez das autoridades que cobram caro por serviços públicos ultrajantes desperte a ira de quem não tem mais quase nada a perder. É compreensível que o despreparo da Polícia Militar, cujos agentes promoveram espetáculos deploráveis de força bruta, enfureça a juventude rebelada. É compreensível, ainda, que alguns dos ativistas não disponham dos recursos intelectuais mínimos para discernir os fundamentos da democracia, inclusive os fundamentos que lhes garantem o direito de marchar nas avenidas. Mas não é aceitável, sob nenhuma perspectiva, que criminosos infiltrados nas manifestações elejam o banho de sangue como método. Isso é barbárie, uma estultice além do esquadro. Disparar fogos de artifício para matar um jornalista que apenas registra um acontecimento – como classificar um descalabro desses?

Quem fere um profissional da imprensa atira contra si próprio – mas isso, que deveria ser óbvio, soa como frase sem sentido aos ouvidos do vandalismo que agora atenta contra a vida humana. Foram os jornalistas que registraram e denunciaram ao público os primeiros excessos da Polícia Militar, nas passeatas de junho do ano passado. Foram os jornalistas que investigaram e publicaram as bandalhas e os desvios da corrupção contra os quais as manifestações se ergueram. Foram os jornalistas, também, que mostraram ao país e ao mundo o que reivindicavam aqueles que estavam nas ruas. Não fossem as câmeras de TV, não fossem os repórteres, as passeatas teriam minguado na invisibilidade. Como entender que um manifestante não saiba que, ao atacar um jornalista, ataca a si mesmo? Será que o projeto de quem assassinou Santiago é nada menos que a escuridão?

O Brasil que sai desse crime não é apenas mais triste e mais desencantado. É mais trágico e menos previsível. Nesse Brasil, existe gente que acorrenta um adolescente nu a um poste para melhor açoitá-lo. Existe gente que acha que isso é uma reação natural, pois o moleque era um ladrão. Existe gente que mata jornalista. E existe gente que repete um vaticínio que não sabe direito de onde veio: o método é sangrento, mas a história não conhece outro. A depender dessas fantasias tanáticas, a coisa ainda pode piorar.

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