quarta-feira, 12 de março de 2014

Crônica do dia - A África e o mar

Adriana Calcanhotto
 

 

Estar, em uma semana, nas duas pontas do caminho que Amyr Klink fez num bote a remo e eu em uma poltrona aérea soterrada de livros, me fez pensar a respeito, a África é tão dura e tão nobre que chega a doer


Escrevo de frente para o mar do Norte, que não conhecia, e que me arrebatou. Minha vida, abrir o laptop em um quarto de hotel de frente para o mar, tocar violão, não necessariamente nessa ordem. Me dei conta então de que não escrevo de frente para o mar, mas de frente para os mares, tão diferentes sendo que são o mesmo, fascinante. Inúmeras vezes tentei começar uma coluna com “escrevo de frente para o mar”.
Escrevia de frente para o mar em um quarto de hotel em Fortaleza, uma semana depois de estar do lado de lá do horizonte. Em Luanda, mais precisamente. Na África não uso relógio, ou até uso, mas não olho, e desligo o celular. Desligada já sou, é a fome com a vontade de comer. O tempo na África é muito diferente de qualquer outro, como sempre imaginei que seria. Largo, profundo, ancestral.
Quando adolescente sentava com um namorado na areia da praia de Tramandaí e ficávamos horas olhando e suspirando “nossa, a África está logo ali do outro lado”. Realizei o sonho de ir à África e é por isso que quanto mais vou, mais quero ir. Então, estar, em uma semana, nas duas pontas do caminho que Amyr Klink fez num bote a remo e eu em uma poltrona aérea soterrada de livros, me fez pensar a respeito, a África é tão dura e tão nobre que chega a doer.
Já senti na pele, com trocadilho, por favor, o que é ser discriminado pela cor, na África negra. Por ser branca, não importa que eu me sinta africana. Não posso culpá-los, embora ache o racismo execrável, para eles represento, afinal, o inimigo. Esperando o elevador no saguão de um hotel em Luanda, foram chegando pessoas, todas negras, também a esperar. Quando o elevador chegou ao térreo, vazio, entrei, era a primeira da fila, e me posicionei no fundo da cabine para dar espaço aos outros. Pois eles não entraram. A porta fechou, e eles ficaram todos estaqueados lá, esperando outro elevador, pois nunca entrariam ali para se misturar a uma mulher branca. Um amigo moçambicano, negro, me contou que quando muito jovem pulou na piscina de um clube em Joanesburgo onde havia mais ou menos umas 15 pessoas brancas dentro e no que ele bateu na água, todos saíram ao mesmo tempo. Mas é engraçado, me tratam como “branca”, como europeia, mas basta dizer “sou brasileira” para os sorrisos se abrirem.
Frequento por enquanto a África de língua portuguesa, porque assim mato dois coelhos numa cajadada só, estou na África, que amo, ouvindo a língua que amo. Se não tivesse tantas entrevistas para ficar me repetindo mundo afora, era capaz de ir me deixando por lá ficar.
O porte dos angolanos, os sorrisos dos moçambicanos, o orgulho da mestiçagem que os cabo-verdianos têm, tudo é incrível pra mim. As roupas, por exemplo. Por que no Brasil não andamos vestidos com panos? Já pensou que lindo, turbantes e capulanas no calor senegalês do fevereiro carioca em vez de pobres advogados derretendo dentro de ternos com modelagem europeia durante todo o verão? Nos salões do hotel em que estive da última vez em Luanda, três casamentos foram celebrados, em três noites seguidas, e por três noites seguidas vi angolanos vestidos para um casamento. Os jovens à moda europeia e as senhoras com panos e turbantes. A autoridade, a elegância dos africanos mais velhos vestidos de africanos deixa a garotada de jeans ou vestidinho apertado, para usar um termo de acordo com o assunto, no chinelo.
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A propósito da minha coluna anterior recebi um “aviso” enviado por Leonardo Henrique Lucas de Lima e Silva. Reproduzo aqui nossa correspondência porque acredito que ela confirma minhas impressões e porque me parece que publicá-lo é de utilidade pública:
“Avise a cantora ‘pseudo-colunista’ que ‘gente inferior’ é quem escreve asneiras em um jornal de grande circulação. Sua declaração na coluna quinzenal de domingo repercutiu muito mal entre os médicos anestesiologistas e enfermeiros. Será que essa ‘gente inferior’ agredida moral e publicamente terá grandiosidade quando for lhe prestar atendimento ou se comportarão como gente inferior? Rezo por sua saúde. Principalmente a mental.”
Não sei por que o “gente inferior” entre aspas, já que não utilizo essa expressão no meu texto. Seu e-mail só confirma a arrogância de certos profissionais da saúde, e de todas as áreas, que são incapazes de admitir erros, a coisa mais humana de todas. Bom saber que a classe médica pode me retaliar como paciente por minha opinião e me tratar sem “grandiosidade”. Vou publicar seu e-mail na próxima coluna para que os leitores de um jornal de grande circulação saibam como alguns médicos, anestesistas e enfermeiros, por quem você fala, tratam pacientes que declaram não concordar com determinadas posturas de descaso, tanto com o paciente quanto com o juramento ético com o qual se comprometeram. Sentiu-se moralmente agredido? E os pacientes que sofrem por enganos médicos? E o senhor que há pouco tempo foi transferido do CTI onde lhe retiraram a máscara de oxigênio para transferi-lo para o quarto, em hospital do Rio de Janeiro, e ele morreu no caminho porque não podia ficar sem a máscara, e chegou ao quarto morto?
Minha saúde mental vai bem, Henrique, muito melhor do que a de profissionais de saúde que têm preconceito com (ou contra?) doenças mentais. Pobre Brasil.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/a-africa-o-mar-11826887#ixzz2vmIeVkU2

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