RIO - Fernanda Montenegro foi ameaçada de morte pelo telefone. Do outro lado da linha, uma voz disse que ela levaria “um tiro certeiro na testa”. Dias mais tarde, uma bala estraçalhou a janela do quarto onde ela descansava. Na mesma época, José Celso Martinez Corrêa e seus companheiros do Teatro Oficina mandaram a bela italiana que trabalhava na bilheteria do grupo a Brasília para dormir com um censor e descolar a liberação da peça “O rei da vela”. Roberto Farias apresentava “Pra frente, Brasil” no Festival de Gramado quando soube que o filme havia sido censurado. Naquele dia, ele fazia 50 anos, mas a revolta se sobrepôs à alegria de ter levado o prêmio de melhor filme do festival. Tom Zé foi preso duas vezes e descobriu que, nas prisões políticas da ditadura militar, cada detento tinha que pagar 70 mil cruzeiros à polícia e dedurar um companheiro. Nas artes visuais, o regime não foi mais brando. Antonio Manuel fugiu de Salvador depois que a Bienal da Bahia foi fechada pelo Exército. Ele jamais recuperou o painel. Tempos depois, novamente foi proibido de exibir uma obra, numa exposição no Rio. “Foi como se me mutilassem”, diz.
Reunimos testemunhos desses e de outros artistas que tiveram suas vidas viradas do avesso pelo regime militar — cujo início completa cinco décadas no dia 31 —, além das visões dos colunistas Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto. Os relatos deixam evidente também que, em contrapartida àqueles 21 anos sob ditadura, viveu-se um dos períodos mais férteis da produção cultural do país. Consolidaram-se, naquela época, nomes que seguem como referência nas artes nacionais.
Para pesquisadores da área, as duas décadas de ditadura podem ser divididas em três períodos distintos. O primeiro, entre 1964 e 1967. O segundo, de 1968 à Anistia, em 1979. E o terceiro nos anos 1980, na redemocratização do país. Os três reverberam até hoje na produção brasileira.A combinação de diferentes elementos contribuiu para tal fertilidade, dizem especialistas. A existência de um inimigo comum somou-se à expansão da TV e da indústria cultural no país, dando origem a um ambiente em que a criatividade ganhou fôlego para combater o moralismo hostil das fardas. Foi o tempo da linguagem cifrada, das críticas nas entrelinhas e da ironia dos cartuns.
— Na primeira fase, vemos um deslocamento da cultura da elite para a classe média — afirma Mônica Almeida Kornis, doutora em Ciências das Comunicações da Fundação Getulio Vargas. — Até 1968, do ponto de vista formal e artístico, havia uma busca por uma linguagem inovadora. Naquele ano, “O bandido da luz vermelha” (de Rogério Sganzerla) trouxe a frase que define bem o momento posterior: “Quando a gente não pode nada, a gente avacalha”. A censura era fortíssima. Mas a TV se nacionalizou, a indústria cultural explodiu, e a música se expandiu com força nos festivais. Nos anos 1980, houve a diversificação dos produtos, e a ideia de inimigo comum se perdeu um pouco.
— Era, no fundo, uma briga que começou na Grécia e, ao longo da História, foi para lá e para cá — explica Heloisa Buarque de Hollanda, pós-doutora em Sociologia da Cultura pela Universidade Columbia e coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ). — Um personagem forte foi Glauber Rocha. Ele repetia: “Não vou falar, a minha estética é que tem que falar”.Na ditadura, o conflito entre a função política da arte e seu valor estético borbulhava. Alguns a defendiam como instrumento de luta, outros priorizavam o estudo da forma.
Em segundo plano
No extremo oposto estavam os membros dos Centros Populares de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), que sonhavam criar uma “arte popular revolucionária”. Eles encenavam peças em portas de fábricas e sindicatos para conquistar trabalhadores para a luta política. Desmantelado em 1964, o grupo teve como último presidente o poeta Ferreira Gullar. Hoje, ele considera “ultrapassados” aqueles ideais:
— A preocupação em fazer a revolução era de tal ordem que a arte ficava em segundo plano. Aos poucos, fui mudando minha poesia. No começo era mais política do que poética. Vi que não era por aí. O que a gente estava fazendo era comício — diz ele. — Mas uma geração de artistas foi influenciada pelo CPC. O Chico (Buarque), por exemplo.
Entre 1960 e 1980, o Brasil viveu o boom da indústria cultural. Aparelhos de TV popularizaram-se entre a classe média e ajudaram a consolidar a “integração nacional”. A música foi beneficiada disso, sobretudo com os festivais da canção.
— Naquele momento, os setores mais dinâmicos eram protagonizados por uma classe média de oposição. Não necessariamente de esquerda ou revolucionária. Os quadros intelectuais dessa indústria eram recrutados entre universitários. Essa é uma contradição rica e interessante do período — aponta Marcos Napolitano, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo.
Passados 50 anos, uma das principais consequências do golpe, na opinião de especialistas, foi a escassez dos espaços de debate na cultura, como eram o Cine Paissandu e a cantina do MAM.
— Antes do golpe, as pessoas se reuniam para falar de cultura e política. Esses lugares não eram apenas guetos. Havia gente de todo tipo. Eram espaços de cruzamentos e não só de contemplação. Isso acabou junto com a repressão — diz Mônica.
Para os especialistas, no entanto, diferentemente do que ocorre na Argentina e no Chile, a arte brasileira ainda não se apropriou daquele momento. O golpe segue um tema em aberto.
em http://oglobo.globo.com/cultura/50-anos-do-golpe-arte-foi-luta-11956610#ixzz2x76PpVzt
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