domingo, 2 de março de 2014

Entrevista - Ferréz - " O rolezinho foi só o primeiro ato"

 

O escritor, que vive na periferia paulistana, fala sobre música alta de madrugada, abordagem policial e o convívio com bandidos. Sua opinião: a revolta na periferia vai piorar

IVAN MARTINS
                                           
                                                             
"O último amigo meu que era personagem deste livro morreu no ano passado”, diz Ferréz, da forma mais natural do mundo. Ele aponta sobre a mesa para uma cópia de Manual prático do ódio, livro de 2003 relançado agora pela Editora Planeta. Nele, conta a história de uma quadrilha de bandidos do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, onde Ferréz – aliás, Reginaldo Ferreira da Silva – nasceu em 1975, filho de pai motorista e mãe empregada doméstica. Há 17 anos, ele vem contando em prosa e verso, ao longo de seis livros, como vive, pensa e sente o povo da periferia. Na semana passada, ainda sob efeito da morte do cinegrafista Santiago Andrade, ele falou a ÉPOCA sobre crime, trabalho, esperança e revolta nos limites da cidade. A seguir, um resumo da conversa.
 

A VOZ DA PERIFERIA Ferréz na rua principal do Capão Redondo.  “Aqui, eu sou útil” (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
ÉPOCA – O livro Manual prático do ódio, publicado em 2003, sugere que as pessoas da periferia estão presas entre miséria e violência. A vida melhorou nestes 11 anos?
Ferréz –
Ficou mais apertada. São mais impostos, as contas aumentaram. As pessoas pagam R$ 100 de conta de luz dentro da favela. Se queixam do sufoco financeiro. Fora isso, o bairro cresceu muito, teve um inchaço urbano. Sinto que as pessoas estão mais aflitas e têm menos tempo que antes. Não sei se a vida melhorou.
 
ÉPOCA – A situação de pleno emprego e crescimento da renda nos últimos anos não chegou ao bairro?
Ferréz –
As filas para arrumar emprego continuam. Tem subemprego, mas o moleque percebe que não chegará longe com ele. Ele pensa: vou completar 30 anos e continuar trabalhando na padaria? Vou fazer 30 anos trabalhando no McDonalds. O moleque da periferia quer poder sonhar.
ÉPOCA – O crime continua sendo uma opção glamourosa?
Ferréz –
O crime continua sendo uma opção cultural. O moleque entra no crime porque ouve o vizinho dele falando, o cunhado dele falando. Ele vai assimilando tudo aquilo. É uma cultura que prepara para o ato criminal.
ÉPOCA – E a cultura do trabalho, do cara que acorda cedo porque acredita que vencerá na vida?
Ferréz –
Isso é o que mais tem. Se você vier na periferia às 4h30 da manhã, os ônibus estarão lotados. Ladrão não acorda a essa hora. Há um enorme contingente de pessoas que sai de madrugada da periferia para servir o lanche da elite, para cuidar da segurança da elite. Elas voltam para casa e muitas vezes não têm comida nem segurança para elas mesmas. A sorte do Brasil é que as pessoas da periferia são honestas.
ÉPOCA – O senhor tem dito que estão mudando os valores. Que valores?
Ferréz –
O cara que trabalha agora é visto como uma espécie de otário. Isso vem de toda parte. Da mídia, da propaganda. Lembro uma propaganda de carro que dizia que aquele modelo era só para pessoas especiais. Os moleques da periferia querem ser especiais também. O crime é a saída mais próxima.
ÉPOCA – Como é o convívio entre o trabalhador que acorda às 4h30 da manhã e a malandragem?
Ferréz –
De uns tempos para cá, ficou mais complicado. Os trabalhadores querem dormir cedo e não conseguem, porque os moleques fazem barulho de madrugada. Eles agora têm moto, põem som no carro e ficam passando na rua com música alta, de noite. Para quem trabalha, ficou mais difícil morar na periferia.
 
"Quem queima
ônibus não é bandido.
É trabalhador revoltado"
ÉPOCA – Antes era diferente?
Ferréz –
Antigamente, se o vizinho pusesse o som alto, meu pai ia lá, reclamava, e ele baixava o som. Hoje, a rua inteira liga o som alto de madrugada, e o cara que trabalha não consegue dormir. A tal da nova classe média teve acesso a comprar coisas. Mas, se você põe dinheiro na mão do cara e não dá cultura, ele vai exagerar o que já fazia. Não foi dada a base cultural.
ÉPOCA – Como é o convívio com a polícia, que também é composta de gente pobre?
Ferréz –
O policial é pobre, mas não age como. Ele mora perto, mas tem o treinamento da corporação, com outro tipo de ideologia. A polícia aborda as pessoas aqui de um modo como nunca abordará no centro da cidade. Aqui, eles pedem até a nota fiscal do celular. O moleque tem de ter a nota, senão vira suspeito. Se ele está de madrugada na rua, tem de se explicar. É um interrogatório permanente. Quando você acaba de ser abordado, está em pânico. Uma vez, reclamei com um policial, e ele me perguntou se eu queria ser abordado com rosas. Na verdade, só queria ser tratado da forma como eles tratam as pessoas no centro.
ÉPOCA – Como os rolezinhos entram nisso tudo?
Ferréz –
O rolezinho vem de uma massa gigante de jovens que não têm o que fazer. Não adianta o governador abrir os lugares públicos para os jovens. Eles não conseguem entrar. Os seguranças impedem, não querem os moleques fazendo nada lá dentro.
Jovem é jovem, em qualquer lugar do mundo. Nos Jardins ou aqui, o cara é rebelde, quer causar. O rolezinho foi só o primeiro ato, terá muito mais. O país enfrenta uma multidão de gente que quer se inserir, mas uma parte do país não quer que eles se insiram. Reclamam no aeroporto porque tem pobre pegando avião. Reclamam em Paraty porque tem pobre na feira do livro. Mas, espera: não somos a nova classe média? A gente também quer participar.
 
ÉPOCA – Por que essa rejeição acontece?
Ferréz –
Porque o país foi montado pensando na Europa e nos Estados Unidos. O rico quer o modelo europeu de viver, o modelo americano. Ele quer ter casas abertas, com carro estacionado, não quer ter barulho. Mas a gente da periferia não faz silêncio, a gente anda com um monte de amigos. O país terá de lidar com isso, porque não vai parar. Não adianta criar regras para impedir o rolezinho, porque surgirão outras coisas. Haverá conflito enquanto as pessoas não aprenderem a conviver.
 
ÉPOCA – Aqui no bairro há sinais de revolta política?
Ferréz –
Muitos. Antigamente, eu era o cara que reclamava sozinho. Agora nem falo mais. O motorista de táxi reclama dos impostos e dos corredores de ônibus, o cobrador reclama do salário. Todo mundo está insatisfeito. Houve passeatas por aqui e nos bairros em volta, organizadas por moradores. Quando acontece queima de ônibus, são os moradores mesmos. Não é coisa de bandido. Os moradores estão revoltados, e o ônibus é o único contato que eles têm com o Estado.
 
ÉPOCA – Qual sua opinião sobre a morte do cinegrafista Santiago Andrade?
Ferréz –
Achei uma pena, nada vale uma vida humana. Mas também acho que nunca se mudou nada sem sangue nas ruas. Não se muda nada só conversando, infelizmente. Seria perfeito se fosse assim. Mas acho que morrerá mais gente.
ÉPOCA – Mas não dá para fazer manifestações sem violência?
Ferréz –
Não dá para ter manifestações que não tenham casos específicos de violência. Não existe manifestação sem comoção e sem catarse. Isso não tira a legitimidade do movimento, da mudança que o país vive. E não adianta criminalizar, porque só colocará mais caras de máscara na rua, mais gente mal-intencionada. Se o manifestante for visto como criminoso, agirá como criminoso.
ÉPOCA – Mas, como lidar com o cara que sai quebrando tudo?
Ferréz –
A solução do Brasil é sempre importar de fora. Por que não se faz o mesmo agora? A gente não vê a polícia dos Estados Unidos só quebrando e prendendo. Medidas sociais são tomadas para amenizar o problema. Aqui, não. Não tem debate, não tem diálogo. É só pôr a polícia na rua. A Polícia Militar virou a grande mãe. Qualquer coisa que acontece no país, chama a PM. A elite governante tem de aprender que não basta chamar a polícia. Ela tem de conversar.
ÉPOCA – Seu caso não mostra que existe uma saída individual da pobreza?
Ferréz –
Mostra, mas uma vez eu disse isso para um americano, e ele respondeu: “Nem todo mundo é excepcional”. A pessoa consegue sair quando ela é excepcional. Eu me considero assim, porque sempre tive uma visão diferenciada. Tentava vender essa visão para meus amigos, e eles não compravam.
ÉPOCA – Não seria natural mudar para outro bairro a esta altura de sua vida?
Ferréz –
No bar aqui ao lado, trabalha um churrasqueiro que sempre me cumprimenta de forma muito afetuosa. Ele me mostrou uma vez para a filha dele e disse: “Ele é escritor, veja se você estuda para ficar igual a ele”. Aqui me sinto importante, sou um exemplo. Quando vou fazer palestras, os pais dizem para os filhos: “Ele conseguiu ser escritor e é daqui, não precisou mudar”. Isso é importante para mim. Mudar de lugar é fácil; mudar o lugar dá mais trabalho. Só saio daqui o dia em que o lugar mudar para melhor, quando não precisar mais de mim. Ainda acho que sou útil aqui.

Revista Época

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