quarta-feira, 26 de março de 2014

Crônica do Dia - A verdade dói - Adriana Calcanhoto

A verdade dói

O país estava rachado, e os artistas estavam fazendo música, teatro e poesia brasileira com a alta qualidade que lhes é peculiar

Durante a ditadura os militares torturaram, física e psicologicamente, para desmoralizar suas vítimas. Sumiram com comunistas, com suspeitos de serem comunistas, montaram cenas falsas de suicídio para fotografar o cadáver que produziram. Ossadas amontoadas esperam até hoje suas identificações, e há documentos ainda secretos. Há documentos sobre a atual presidente, Dilma Rousseff, em um cofre. Sou a favor de que se libere tudo de uma vez, e logo. Primeiro porque o país tem o direito, e o dever, de conhecer sua história, por mais tenebrosos que sejam os capítulos. No mínimo para que nunca mais se repitam. Segundo, porque os documentos que estão liberados, revelando que os militares já monitoravam a vida dos cidadãos muito antes da internet e do Obama, estão literalmente mofando, carcomidos por fungos, em condições precárias no Arquivo Nacional, uma vergonha, considerando que a documentação foi considerada patrimônio da Humanidade, assim como os documentos do nazismo.
Torturaram garotas como a presidente Dilma, então com 19 anos, que foi cercada com armamento pesado, presa e torturada. Botaram estudantes, jornalistas, pelegos, socialistas e simpatizantes no pau-de-arara, para dar choques elétricos, cacetadas, telefones, socos e pontapés, entre outras barbaridades pelas quais foram anistiados.
A ficha da presidente ninguém pode ver, mas existem documentos de outro tipo que contam essa história de dentro dela, enquanto ela se dava, e contam-na até hoje, que são as canções, apesar da censura. Artistas tiveram suas canções decepadas por qualquer palavra que pudesse sugerir contrariedade com o regime, apesar de este não ser o único critério. A coisa era mais complexa. Ou mais simplória. Canções eram também censuradas por serem consideradas obscenas, por ofenderem a família, a ordem, os bons costumes ou a gramática. Ou seja, a censura agia no mesmo padrão da tortura, estupidamente, e por falta de cultura, por falso moralismo, por cinismo, por hipocrisia, censurava até o que não estava protestando. Geraldo Vandré disse sobre a canção que virou hino contra a ditadura, “Pra não dizer que não falei das flores”, mais conhecida como “Caminhando”: “Não fiz canção de protesto, eu fiz música brasileira.”
O país estava rachado, os militares de um lado e a esquerda, também rachada, de outro: engajados xenófobos contra alienados antenados. Os artistas estavam fazendo música, teatro e poesia brasileira com a alta qualidade que lhes é peculiar. Escrever uma canção é um ato político. Não escrever uma canção também é. Não há ato, aliás, que não seja político. O Brasil anda esquecido disso porque há tempos só faz politicagem, alianças pragmáticas em vez de programáticas e loteamento de cargos. Faz política para os políticos, foda-se a nação. Se não é assim, como explicar o estado do saneamento básico, da educação e da saúde em todo o território nacional?
Quando o Papa Francisco carrega ele mesmo sua pasta, está deliberadamente fazendo política, quando anda de ônibus ou abre a janela do carro para se deixar ser visto por seu rebanho, também. O próprio Vandré disse que passaria a compor só canções de amor. Uma canção não precisa ser de protesto para ser política, mas “Roda viva”, “Ponteio”, “Jorge Maravilha”, “Alegria, alegria,” “Samba de Orly”, “Tropicália”, “Miserere nobis”, “Cálice” e muitas, muitas outras, contam-nos essa passagem vergonhosa da História da Humanidade.
Não fosse a ditadura militar provavelmente não existiria o “Poema sujo”, escrito por Ferreira Gullar na escuridão do exílio, poema esse trazido para o Brasil gravado em fita rolo, escondido na mala diplomática do “vagabundo” poeta do Itamaraty, Vinicius de Moraes. É um lindo poema, mas uma família foi destroçada, um coração de pai foi esmigalhado em seu exílio.
Para sabermos a História (não para comemorá-la) precisamos enfrentar a verdade, por mais repugnante que seja. A indignidade com Rubens Paiva, na prisão, na tortura excessiva que provocou sua morte, na farsa armada no Alto da Boa Vista onde seu corpo foi enterrado e desenterrado depois, para ser enterrado nas areias da Praia do Recreio e então ser desenterrado novamente para que seus restos mortais fossem lançados ao mar, choca. O coronel responsável pelo desaparecimento, e que de nada se arrepende até hoje, explica: “Quando um companheiro morre, o guerrilheiro lamenta, mas acaba esquecendo. Não é como o desaparecimento, que gera uma expectativa eterna.” A esse tipo de conduta é que os milicos nomeavam “retidão de caráter”. É imprescindível que saibamos, mas estejamos preparados, a verdade vai doer bem mais do que choques elétricos na uretra.


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