sexta-feira, 14 de março de 2014

Crônicas do Dia - A classe média de 320 reais e 1 centavo


Lya Luft

Sempre fui da classe média. nem baixa nem alta:classe média alta. meu pai era advogado, depois professor universitário. O pai de meus filhos era professor universitário. eu fui isso por dez anos, e pela vida inteira tradutora e escritora. éramos normais, somos normais, a gente comprava nossa casinha, botava os filhos no melhor colégio que podia, economizava o ano todo para ter féria no verão. Minha primeira viagem ao exterior foi com mais de 40 anos a convite por causa de meus livros. 

Mesmo aposentados, meu companheiro e eu continuamos trabalhando para manter a vida digna, enquanto mente e corpo aguentarem e por sorte gostamos de nossas artes e ofícios. De repente, surge neste estranho pais me que vivemos a ficção que nem eu, ficcionista há tantas décadas, conseguiria inventar:uma classe média que ganha de 320 reais e um centavos (Atentem para o centavo) a 1.120 reais. Sinto muito: primeiro, é proibido, que eu saiba, por lei, pagar salário inferior ao mínimo, que no Brasil é de 724 reais, nem menos, nem mais.

Segundo, quem ganha 300 reais (e 1 centavo) é praticamente miserável, precisa ser socorrido urgentemente por todos os programas, benefícios, bondades e bônus que o governo possa conceder.

Um pedinte em nossas ruas facilmente ganha mais que isso. Conheço pessoas que procuram tirar mendigos das ruas e dar-lhes abrigo, remédio, comida e trabalho por salário mínimo, e levam na cara um "não" em alto e bom som, porque ali, esmolando, se ganha isso ou mais, sem horário, sem compromisso, sem patrão.

Por que inventaram essa bizarra classe média? Para dizer ao povo (Iletrado, desconhecendo tudo o que ler nos jornais e ver programas sérios na televisão poderia lhe mostrar) e aos estrangeiros (que naturalmente não acreditam em nada disso) que somos um país de classe média, onde a miséria foi erradicada, a pobreza está contentinha - enfim, um país das maravilhas de milhões de Alices desmioladas.

Voltemos ao que é garantido por lei, um salário mínimo de 724 reais. Para sermos coerentes, vamos reduzi-lo rapidamente para os 320 reais (e 1 centavo). Porque aí será permitido pagar isso sem infringir a lei. Ou a lei está superada, e nos permitem pagar esse novo mínimo tão mínimo que espanta até o mais remoto ignorante no meio do nada? Vou verificar, porque não sei.

Sei que cada vez entendo menos das nossas coisas, e não é porque já me aflige o toque daquele médico alemão. É porque são esquisitas mesmo, insensatas, inverídicas, ficcionais, facilitadas pelo Carnaval que batuca nas esquinas, ela Copa que já é combatida nas ruas e ninguém ainda entendeu direito o que vai ser, o que pode ser, se vai aparecer com pesada maquiagem ou se será de verdade a alegria do povo.

Eu quero toda a alegria para o povo, toda a comida, todos os remédios, todos os bancos escolares, todo o trabalho decente, tudo. Não desejo um pagamento mensal de 320 reais (e 1 centavo).

Tudo isso me inquieta, porque raramente vejo alguma contestação a tamanha fantasia. Aceitamos, mudos e quedos, que ganhar 320 reais (e 1 centavo) nos bota na classe baixa ou pobre? Algo em torno de 320 - retire-se aquele centavo - ou 200 reais, ou nada, que é quase a mesma coisa? Não sei. Minha inteligência não alcança tal contabilidade, não consegue abranger tal visão de mundo nem acompanhar esses cálculos. Enfim, estou fora.

Estou em minha casa lendo, escrevendo, coma família, amigos e meu companheiro (que como eu, mesmo depois dos 70, trabalha muito).

Fazendo a cada 15 dias esta coluna, e olhando com espanto, assombro, bastante desalento e muita curiosidade o que se passa neste Brasil: o que mais vão nos dizer, o que mais vai acontecer, que leis inúteis e desnecessárias vão inventar, quantas comissões, quantos planos e projetos, enquanto olhamos cantando glórias ou contendo soluços.

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