quarta-feira, 26 de março de 2014

Crônicas do dia - O futebol do país - Arthur Dapieve

O racismo boleiro é uma irrupção do racismo maior, enraizado e dissimulado na sociedade brasileira

Bem, agora que o carnaval acabou (acabou, né?) e o ano começou, podemos tratar do que realmente importa: futebol. Em meio a campeonatos estaduais moribundos disputados por equipes mortas-vivas, o pontapé inicial na temporada foi dado por duas manifestações de racismo ocorridas na semana passada: na quarta-feira, o árbitro gaúcho Márcio Chagas da Silva foi xingado por torcedores do Esportivo, em Bento Gonçalves; na quinta, o jogador Arouca, do Santos, sofreu o mesmo em Mogi Mirim.
Reações de apoio às vítimas e de repúdio aos imbecis logo vieram de muitas partes, inclusive da presidente Dilma Rousseff, mas todas elas continham em si alguma dose de surpresa, como se dissessem: “Racismo no Brasil?! É inacreditável... Racismo só há na casa dos outros!”. Difícil é crer que alguém de fato acredite nisso. Porque, como disse Tinga, do Cruzeiro, recente alvo do racismo no Peru: “No Brasil, a gente fala de igualdade, mas esconde o preconceito. A gente fica fingindo que todos são iguais.”
O racismo boleiro é uma irrupção do racismo maior, enraizado e dissimulado na sociedade brasileira. Nem poderia ser diferente quando se foi escravocrata, por assim dizer, até anteontem. O que poderia melhorar — e já houve progressos — é o grau de conscientização em torno do problema. Porque ele jamais desaparecerá, daqui ou da face da Terra. Haverá “racismo” onde quer que fenótipos diferentes convivam, o que apenas aumenta a necessidade de admiti-lo para que se possa reprimi-lo duramente.
Contudo, mesmo a surpresa com as manifestações de racismo no país cuja glória maior atende por Pelé se insere noutro conto da carochinha, ainda maior, de dimensões continentais. Os discursos dos governos, da publicidade e de grande parte da imprensa esportiva alimentam a ilusão de que o futebol vive num universo paralelo, autônomo em relação ao resto do país. Este pode ser violento, corrupto e racista, mas o futebol, ah, não, só ressalta virtudes que nos atribuímos: a alegria, a solidariedade, a criatividade.
(Isso subentende a ideia igualmente falsa de que italianos não são alegres, japoneses solidários ou alemães criativos, para ficarmos só nos contrassensos mais escandalosos. Seja como for, o marco zero do nacionalismo é assunto para outro dia.)
Violência física nas arquibancadas e nos gramados gera indignação igual ou maior do que as agressões verbais do racismo, seguida da repetição de promessas nunca cumpridas de punição rigorosa. Os criminosos de uma torcida organizada do Corinthians que mataram um adolescente boliviano no ano passado, por exemplo. O que foi feito deles ou de sua facção? Depois de chorarem de saudade das mamães e de empunharem a Bíblia diante das câmeras de TV, eles foram repatriados para logo em seguida se envolverem em briga com uma facção do Vasco e invadirem o centro de treinamento do Corinthians a fim de intimidar e agredir jogadores e funcionários. Eles são criminosos, mas não são “marginais”, isto é, não são pontos fora da curva. Estão inseridos no contexto de um país que é hiperviolento e onde se exalta a impunidade.
Detonadas pelos aumentos injustificados das tarifas de ônibus e engrossadas pela revolta contra os nebulosos gastos governamentais com a preparação para a Copa do Mundo, as manifestações de junho do ano passado foram, elas sim, algo ímpar. Nelas, o Brasil do dia a dia enfim se chocou contra o Brasil da fantasia. Num primeiro momento, o coordenador técnico da seleção, Carlos Alberto Parreira, repisou a lenga-lenga de que “futebol e política não se misturam”. Porém, em janeiro, inteligente que é, Parreira voltou atrás e criticou o Estado: “Copa é estádio, mas torcedor precisa de aeroporto, segurança, conforto, transporte.” Só faltou falar em educação para ecoar as ruas.
A suposta autonomia do futebol em relação à realidade se manifesta ainda na reafirmação — estatisticamente insustentável num país onde a corrupção é endêmica em todas as áreas — de que o futebol é um oásis de honestidade, ou seja, não há árbitros mal-intencionados, equipes fazendo corpo mole, portadores da “mala preta”, cartolas lavando dinheiro, resultados manipulados, estádios superfaturados. Nesse campo, mais uma vez, o futebol não é uma exceção às regras brasileiras e sim a confirmação delas, representante tanto do que temos de melhor quanto do que temos de pior.
______


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-futebol-do-pais-11872791#ixzz2x7AaIcVv 
© 1996 - 2014. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário