sábado, 1 de março de 2014

Lima Barreto - O homem que sabia português

O homem que sabia português:
Lima Barreto e algumas interpretações possíveis
Luís Carlos Lopes



 

   

 

 
Resumen: A literatura de Lima Barreto teve o propósito consciente de fazer a crítica social e de cultura do Brasil. Ele acreditava na função política do que escrevia, o que não o impedia de fazer arte. Sua concepção estética não era panfletária. Não escrevia para educar as massas, para agradar um partido ou fazer propaganda. A relação de Lima Barreto com a língua portuguesa o diferenciou e ainda hoje causa polêmica. Curiosamente, algumas críticas de época são ainda repetidas. É verdade que seus livros nem sempre foram bem cuidados do ponto de vista editorial. Este problema esteve relacionado à sua posição no campo literário e não à sua capacidade lingüística.
Palabras clave: Lima Barreto, literatura brasileña
 
Intróito
O caminho cartesiano, quase obrigatório, para escrever este texto seria o de começar pelo nascimento de Afonso Henriques de Lima Barreto. A partir daí, falar de sua vida, suas obras e por fim de sua morte. Preferiu-se imitar outro glorioso escritor afro-brasileiro - Machado de Assis - e começar pelo desaparecimento físico do autor, inspirando-se em As Memórias Póstumas de Brás-Cubas. É verdade que as relações entre os dois escritores não foram significativas. Pertenceram a gerações diferentes. A idéia de que o mais jovem teria sucedido o outro carece de fundamentação, escondendo, talvez, modos preconceituosos de se compreender a evolução da literatura brasileira.
Quando Lima Barreto (1881-1922) surgiu no panorama da literatura brasileira, Machado de Assis (1839-1908) já era um homem velho, para os padrões da época, e bastante ligado à burocracia das letras do país. Esta foi chamada por Pierre Bourdieu, analisando o caso francês, de campo literário. Machado foi um dos seus organizadores, no final do século XIX. O autor mais jovem encontrou pronto o sistema que incluía a crítica, a academia, os editores e o público leitor. Viveu mais ou menos à margem deste campo ou sistema organizado e dominado por alguns, conseguindo publicar um pouco de sua produção. Acabou por se tornar conhecido pelo valor simbólico de suas obras e também por efeito de suas intervenções memoráveis na imprensa da época. Escreveu para um exíguo mercado, que era ainda pouco aberto a novas aventuras da arte de escrever ficção. Nada disso impediu sua grandeza.
Os dois autores tinham algumas coisas em comum, dentre elas, uma fina inteligência e uma rara sensibilidade. Eram mestiços e descendentes de escravos. Seus ofícios os faziam próximos da elite social e cultural letrada que consistia em grande parte do seu público leitor. Conheciam a arte da escrita em língua portuguesa. Foram capazes de desenvolver estilos próprios e inovadores, distanciando-se das tradições literárias que os envolviam. Tinham, contudo, várias diferenças de personalidade e de opções político-filosóficas. O fato de ambos serem próximos na origem pouco os aproximou. Além das diferenças entre ambos, no momento de decolagem do jovem autor, a realidade do país havia se modificado bastante. A escravidão e o império eram coisas do passado, contudo, ainda ressoavam com força e impregnavam a atmosfera social e cultural da jovem república.
O falecimento jamais é o fim de um grande escritor. Sua vida continua através de suas obras. Quem conhece a cidade onde Lima Barreto sempre viveu e o que este escreveu sabe que o jovem foi um arauto de um país em processo de modernização. Percebe que ele foi alguém capaz de captar problemas que a historiografia nem sempre foi diligente o suficiente para relatar e analisar. Filho de seu tempo, o escritor terminou construindo uma obra tão importante quanto à de Machado, mesmo que tenha sido menor em volume e menos cuidada do ponto de vista editorial. Suas reflexões sobre a condição humana em geral e, especificamente, sobre o modo brasileiro de ser continuam vivas e procedentes. Mas, vamos a sua prodigiosa aventura social, política e estética.
No dia um de novembro de 1922, morria Afonso Henriques de Lima Barreto. Não há registro de filhos, esposas ou amantes. Sua morte, aos 42 anos de idade, pode parecer prematura, nos dias que correm. Entretanto, na época, era bem comum falecer ao passar da quarentena. Isto ocorria, ainda mais freqüentemente, entre os pobres e suburbanos. Como eles, o escritor enfrentou o vício do álcool, doenças, poucos recursos, inúmeros problemas pessoais e familiares. Não deixou fortuna material de alguma importância, além de sua obra literária. Sua mãe faleceu, quando ele tinha sete anos. O pouco que ganhou como escritor e pequeno funcionário público consumiu na sua vida de artista-boêmio, passada junto com sua responsabilidade por uma família composta por quatro irmãos menores e pelo pai. Este enlouqueceu e não pôde mais trabalhar vinte anos antes do passamento do escritor, falecendo logo a seguir ao filho ilustre.
O autor pertencia ao grupo sócio-étnico dominante no Brasil urbano, em especial, na cidade do Rio de Janeiro. Era um mestiço afro-brasileiro de origens modestas. Talvez se possa dizer que chegou a ser pertencente às baixas classes médias urbanas da época. Foi uma das poucas pessoas, com a mesma origem, capaz de dominar o português escrito, com maestria e estilo, no contexto em que viveu. Alguém muito especial, proveniente de um meio distinto de suas potencialidades e capacidades de artista. Um homem de hábitos intelectuais refinados, leitor em inglês, italiano, espanhol e francês, tal como atesta o inventário de sua biblioteca e várias citações e comentários gravados em seus escritos. Lia de tudo, mas seu interesse maior era pela arte literária universal.
Lima Barreto tinha um amor infinito pelo trabalho intelectual, uma paixão sem limites por qualquer forma de saber e a vontade férrea de servir ao seu povo como um grande escritor. Neste sentido, era diferente dos pobres com quem convivia, nos subúrbios e no centro da cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, amava sua gente, que retratou sistematicamente. Sabe-se que, como acontecia inúmeras vezes, ele vinha se sentindo mal e que três dias antes de morrer, se encerrou em casa, em um subúrbio da Central do Brasil - Todos os Santos -, junto com os seus livros e sua pena. Morreu, como viveu sua curta idade adulta, apaixonado pelo conhecimento e, especificamente, pela literatura.
Os necrológios publicados pela imprensa carioca coeva reconheceram, não sem desdenhar um pouco, sua importância como escritor de gênio. Os mesmos periódicos descreveram fragmentariamente o seu enterro peculiar. Seu corpo foi transportado de trem até a Estação Central, em um vagão funerário. De lá, foi levado para o bairro de Botafogo, até o cemitério São João Batista, onde eram e, ainda são enterrados muitos dos personagens ilustres da cidade do Rio de Janeiro. Não há registro da presença de autoridades ou de outros escritores. Foi enterrado no mesmo local que descreveu no seu conto hilário e mordaz Carta de um Defunto Rico. Se Lima Barreto tivesse escrito absurdamente sobre seu enterro, certamente retiraria a palavra “rico”, substituindo por “pobre” e faria todos os ajustes pertinentes à natureza de sua vida.
A morte física de Lima Barreto encerrou abruptamente uma carreira literária plena de realizações e de desditas. Ele conseguiu, em apenas 40 anos de existência, produzir obras que marcaram a história da literatura brasileira de modo definitivo. Teve imensas dificuldades para editá-las, mas conseguiu ver em vida algumas delas. O seu trabalho de escritor não foi nada diletante, e nem teve qualquer facilidade fruto de sua posição e relações. Ao contrário, enfrentou e venceu inúmeros problemas e precariedades. Na época, tal como hoje, viver no Brasil do ofício de escrever era uma missão quase impossível. Pior ainda, para quem não alugava sua pena e não cedia à tradição, aos sensos comuns, modismos e adesismos.
Mesmo que contra ele tenha havido a tradicional conspiração do silêncio, o conjunto de sua obra se manteve como testemunho de um tempo, contendo um projeto estético especial e uma visão crítica afiada da sociedade brasileira. A vitalidade dos seus escritos é comprovada pela possibilidade de lê-los hoje e perceber sua aplicabilidade na análise do caráter do país. O mesmo transparece no que se refere às suas observações argutas sobre a condição humana e a história do Brasil da época. O que ele observou, sobre os homens e as mulheres de seu tempo, ainda está presente na consciência dos que lêem a literatura brasileira. A vida ardente e sofrida do jovem autor vem se perpetuando, depois de mais de 80 anos de sua morte. Ele ainda consegue provocar o encantamento de seus leitores e a sensação de reverência frente a um grande autor.
Não foi dada ao escritor carioca a láurea da imortalidade formal da Academia Brasileira de Letras. Lima Barreto não é nome de nenhuma artéria importante da cidade que tanto amou e por onde deambulou fartamente na sua curta existência. Muitos dos escritores de sua época tiveram sua literatura esquecida. Os seus nomes vagam no limbo da toponímia urbana carioca e nas galerias fotográficas da burocracia dos fardões. Ele conseguiu muito mais. Está vivo, no panteão da verdadeira imortalidade que pode ser obtida por um escritor. Permanece como uma referência fundamental para todos os que se interessam pela civilização brasileira e, mais ainda, para os que entendem que sua literatura consiste em um marco fundador da modernidade das letras do país. Seu amor pelos humilhados e ofendidos ressoa como um tambor humanista. Este toca a melodia de problemas sociais que ainda persistem e não querem deixar o cenário da história do Brasil.
 
As marcas do contexto e a atitude do escritor
A breve vida de Lima Barreto (1881-1922) transcorreu em um momento-chave do início do processo de modernização do Brasil. Ele testemunhou, junto com seu pai, o fim formal da escravidão (1888), ainda criança, assistindo a cerimônia do lado de fora do Paço Imperial, do anúncio da Lei Áurea. Vivendo no Rio de Janeiro, soube da Proclamação da República (1889), dos governos militares e das revoltas que se sucederam. Assistiu e comentou estes e outros acontecimentos com o olhar dos estratos mais pobres, procedimento que jamais abandonou em sua literatura. Conviveu com a agitação sociopolítica de diversos matizes da velha capital, presenciando a seqüência de episódios marcantes das duas primeiras décadas do século XX, já na condição de adulto. No que escreveu, as marcas do contexto são facilmente visíveis e de um modo muito além do relato formal.
O seu modo de comentar os episódios históricos, ainda hoje provoca certo estupor nos críticos. Não raro, o escritor foi considerado monarquista, conservador e suburbano por não cantar loas ao mito republicano-positivista. Sua visão policarpiana vai além da historiografia de almanaque e rasga o véu da tradição. Havia traços na jovem república mais conservadores do que na velha monarquia decadente. Aos seus olhos, a nova instituição política parecia mais contra-revolucionária do que algo realmente progressista. Ele jamais gostou das fardas e do formalismo de gabinete dos governos. “Eles” eram por demais “brancos” para o seu olhar mestiço, profundamente brasileiro e popular.
Não lhe convenceu igualmente o modo que a escravidão brasileira foi abolida. Lima Barreto sabia que o fim do cativeiro tinha sido uma revolução social incompleta. Percebeu que a discriminação racial continuaria e que as possibilidades reais dos negros e dos mestiços continuariam, no pós-escravidão, bastante limitadas. Viu o problema com imensa dualidade e sofrimento na própria pele. Compreendeu que os preconceitos dos quais foi vítima se originavam na sua origem étnica e nos problemas sociais decorrentes. Não lhe era estranho o fato da imensa capacidade das elites em mudar, sem alterar as estruturas profundas do país. Nada disso lhe agradava e ele não escondia isto de ninguém, pelo menos no que escrevia. Talvez, por isso, as possibilidades de sua aceitação no campo literário da época fossem limitadas. Ele achava isto um absurdo e, ao seu modo, buscou com todas as suas forças ser aceito e compartilhar o mesmo espaço material e simbólico dos seus colegas escritores.
O escritor viu com muito desagrado os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial. No que escreveu, revelou um pacifismo consciente e bem centrado. Condenou as guerras e militou pela paz universal. Recebeu com muito ânimo as notícias da Revolução de Outubro na Rússia. Há evidências de sua possível conversão ao que se chamava na época de maximalismo. Tal como Euclides da Cunha, Lima Barreto teria acreditado nas proposições do socialismo soviético nascente. Morrendo em 1922, não teve tempo de saber mais sobre o que de fato ocorria na Rússia. Não há elementos decisivos, a não ser especulativos, para se crer que, se tivesse vivido mais tempo, teria se convertido ao comunismo soviético. Ele jamais aderiu integralmente ao anarquismo, que é o que estava mais próximo de sua vida concreta. A relação do escritor com a política era tópica, pelo menos no sentido mais formal da mesma. O que mais lhe interessava era a literatura. O que lhe interessava no fenômeno político era, principalmente, os ideais de constestação à ordem estabelecida. Esta, ele sempre considerou opressiva e distante dos interesses da maioria. Nos seus textos, a política aparece, quando se trata de discordar com veemência das arbitrariedades e da corrupção praticadas no âmbito do Estado brasileiro. O front literário era o seu espaço de combate ao que lhe parecia injusto ou absurdo.
O viés que movia o trabalho de Lima Barreto era o da crítica social e mais ainda o da crítica de cultura. Suas obras foram calcadas em observações mordazes sobre as estruturas sociais que bem conhecia, pautadas em desigualdades terríveis. O que lhe apetecia era analisar os costumes das elites e das classes médias a elas vinculadas. Nada restava em pé, quando descrito por sua pena. Ele demolia, pacientemente, o teatro comportamental de burocratas, militares, advogados, juízes, políticos, médicos, jornalistas, endinheirados pouco letrados, escritores da moda e medíocres, professores autoritários e pouco cultos, dentre outros. Divertia-se em apontar suas vicissitudes, suas pompas e misérias. O humor ferino era uma de suas técnicas para descrever as pessoas com que conviveu na vida real e na imaginação derivada da criação literária.
Seus livros, contos e crônicas construíram um verdadeiro painel social de época. Seus personagens e ambientes parecem que vão sair das páginas impressas e invadir o mundo real. Eles transcendem ao seu tempo, sem perder as vinculações com o passado. Para quem é brasileiro e carioca, viajar nas páginas de Lima Barreto significa ir ao início do século, sem sair completamente do presente. Isto porque algo do que ele falava continua vivo nas ruas do Rio de Janeiro. Para quem não é do Rio, sendo brasileiro, certamente o lerá a partir de pessoas e situações bastante parecidas de sua terra. Se for um estrangeiro, de um país ibero-americano, encontrará muitas semelhanças. Se o leitor for de uma cultura bem distinta, como a dos países nórdicos, não será difícil se aproximar pela diferença e encontrar tipos humanos similares que possuem outros valores e falam outras línguas. A universalidade da literatura do autor não é difícil de ser percebida ou imaginada.
O escritor foi, ainda, pouco traduzido. Estão disponíveis em francês, alemão e espanhol, algumas de suas obras. Não se conhece a existência de edições em inglês. Lima Barreto foi mais ou menos esquecido, entre a década de 1930 e a de 1950. Sua literatura sempre foi popular demais para gosto das elites mais formalistas. Seu enfoque hiper-realista e moderno perturbou a paz dos que entendiam o ato de escrever como um “sorriso da sociedade”, na expressão grafada por Afrânio Peixoto. Sua solidão ainda estonteia os que valorizam em demasia movimentos e as tendências de época. Alguns os classificaram como pré-modernista (Alceu de Amoroso Lima, seguido por vários outros), colocando-o atrás da vaga decorrente da semana paulista de arte moderna, que ocorreu no ano de sua morte. De tudo isto, resta a força de sua literatura e a imensa popularidade, sem populismo, do seu texto. Pena que sejam poucos os leitores brasileiros capazes de se apaixonarem pela sua obra.
O senso ético do autor era profundo. Logicamente, ele desejou ser mais reconhecido e ter maiores possibilidades materiais que sustentassem o seu ofício por opção. Como um ente racional, achava um absurdo que implicassem até com sua letra. Assentia com a pressão e continuava a buscar brechas de sobrevivência. Não era uma pessoa colérica e dada ao enfrentamento. Na literatura, ele colocou suas forças, queixas e esperanças. Levava a sério seu ofício de escritor. Não se intimidava com a crítica e nem com os preconceitos. Reagia a isto tudo com sua arma predileta: a construção de personagens, enredos e situações. Viveu para a literatura, consolando-se no vício da ‘parati’, nome dado à cachaça na época, por efeito de uma de suas origens geográficas, no sul fluminense. Mesmo seu vício e suas loucuras, o autor conseguiu ‘vencer’, os tratando como objetos literários.
No seu Diário Íntimo, Lima Barreto escreveu, em 1903, que iria publicar uma História da Escravidão Negra no Brasil e que comentaria a influência da mesma na formação da nação brasileira. Ele era ainda muito jovem, estudava engenharia e buscava o seu caminho intelectual. Tal obra jamais foi escrita pelo autor. A promessa indicava sua preocupação com o problema, que permaneceu subjacente à sua criação literária. Ele jamais renegou suas origens e percebia, como poucos, a importância de se compreender a escravidão para se entender o Brasil. A historiografia brasileira perdeu um possível autor. A literatura ganhou com alguém que podia, por meio de romances, contos e crônicas testemunhar sobre um momento muito especial da história do Brasil. Ao mesmo tempo, ganhavam a arte brasileira e a história. Os seus escritos são fontes excelentes para se compreender o tempo em que viveu, a partir de uma perspectiva literária anteriormente inexistente.
No mesmo texto acima citado, escrito sem o propósito editorial, o autor revelou seu vício pela bebida, já existente na casa dos seus vinte anos. Contou, igualmente, como era para ele difícil se alimentar regularmente. Faltava dinheiro para pagar suas refeições ou onde pudesse comer gratuitamente. Ele não se apertava, comia uma empada no lugar do jantar e ia levando a vida. Talvez isto explique, pelo menos parcialmente, o porquê do seu vício. No álcool havia calorias pagas a baixo preço, e ainda compensadas com efêmeras sensações de saciamento da fome e de leveza do espírito. Sua vida de estudante pobre, mesmo que apadrinhado por um visconde, não era fácil. Tudo isto era somado ao preconceito racial que abalava sua individualidade.
Apesar de todas as adversidades, Lima Barreto, estudante de engenharia, sem jamais concluir o curso, se autopropunha, no começo do século XX, a estudar filosofia, chegando mesmo a estabelecer um plano de estudos, bastante detalhado e ambicioso. Em fins de 1903, o autor já tinha um trabalho modesto, de amanuense concursado - pequeno funcionário administrativo - da Secretaria de Guerra, antigo nome do Ministério do Exército. Já havia abandonado o seu curso superior. Seu pai já havia enlouquecido e se transformado em vendedor ambulante, e seu irmão menor cometia pequenos furtos. Ao mesmo tempo, ele estudava filosofia e desejava ser um escritor. Muitos problemas para uma só pessoa, jovem, frágil e sensível. A bebida lhe cabia bem, como forma de suportar tantas desditas e tentar levar os projetos que desenhou para si próprio. Estava ali, nas ruas que ele freqüentava. Era difícil resistir ao seu apelo, se bem que dizia que tentava não beber.
O Diário Íntimo jamais foi um diário na acepção da palavra. Funcionou como um bloco de anotações contendo informações de caráter pessoal e profissional, muitas vezes sem datas ou remetendo a fatos passados. Nele, o autor exercitou a criação de personagens e histórias, anotou comportamentos de outras pessoas que conheceu e providências a tomar. O mais interessante deste documento é exatamente o seu caráter anárquico que permite ver o escritor de modo próximo a sua verdadeira intimidade. No texto, aparece a sua verve crítica e a sua capacidade de compreender figuras de relevo do mundo social da época e pessoas simples. Como não se tratava de material a ser publicado, não há censura visível. Ele diz o que pensa sobre todos, inclusive sobre si próprio.
No mesmo texto, o escritor analisa temas ainda atuais como, por exemplo, o do trabalho doméstico, por ele condenado como um resquício da escravidão. Não deixa escapar os aspectos mais candentes das notícias que lê nos jornais. Sua capacidade de interpretar as representações jornalísticas é imensa. Tratava dos problemas sociais com muita intimidade, pois os conhecia de muito perto. Verificava a procedência do que saía na imprensa e transforma estas análises em possíveis objetos para uso literário. Fazia o mesmo com suas memórias sobre as pessoas com as quais conviveu. Estas eram oriundas das mais diversas classes sociais e etnias. Analisava-as, não as poupando de impropérios e de críticas profundas aos seus modos de ser. É certo que para alguns poucos, ele teceu elogios circunstanciados. Parece que o Diário foi, na verdade, uma espécie de laboratório preliminar de sua criação literária: um borrão de futuros romances, contos e crônicas.
Os seus procedimentos metodológicos, no que se refere às leituras de livros que fazia regularmente, eram similares. Comentava para si próprio, o que lia diuturnamente. Lima Barreto acompanhava com vivo interesse a literatura francesa. Era capaz, por exemplo, de falar com propriedade do livro Educação Sentimental, de Flaubert, e das tendências literárias da França. Consumia, com avidez, exemplares dos jornais e revistas de lá, que chegavam às suas mãos. Ao contrário de outros, sua admiração pelas letras desse país não o transformava em alguém com sentimento de inferioridade. Tratava de sua literatura e de outros brasileiros com muito respeito por alguns autores, lamentando a existência de poucos leitores que pudessem valorizar o trabalho feito em seu país. Não era um colonizado, numa época onde tal comportamento era habitual.
Apesar de jamais ter ido para longe do Rio de Janeiro, o autor era um cidadão do mundo. Viajava através dos livros e periódicos que consumia avidamente e das múltiplas conversas que tinha em uma cidade cosmopolita e aberta a infinitas influências. Freqüentava as bibliotecas, as livrarias, as redações, as tipografias e os bares. Selou seu destino na palavra escrita e em uma visão aberta ao exterior. Jamais se contentou com um saber comezinho, provinciano e tecnicista. Buscava entender um pouco de tudo e compreender como o Brasil se encaixava no mundo de sua época. Seus textos muitas vezes fazem alusões a terras distantes, a outras civilizações e a línguas diversas da sua. Sua imaginação prodigiosa lhe permitia viajar a países e lugares longínquos, não sem a ajuda de mapas, enciclopédias e dicionários. Nada lhe parecia exótico e impenetrável. Entendia o Brasil, em um contexto mais amplo, além dos seus limites geográficos e de sua história.
 
O método e a estética do autor
Parte-se do princípio que todos os literatos desenvolvem um método. Este pode ser original, como no caso de Lima Barreto, ou pode seguir uma tendência ou escola literária previamente definida. Não se fala aqui em método, na acepção cartesiana de seguir em frente a partir de um ponto dado e de se respeitar, sem variações, as normas de caminhar e da via escolhida de modo rígido e sem possíveis variações. Acredita-se, contudo, que os escritores não trabalham sem ter uma orientação básica que lhe permitam manipular os seus objetos, compondo cenas e personagens. Contar uma história exige saber como compô-la de modo que ela seja crível ou propositadamente absurda. Não basta, apenas, o esforço de memória ou da imaginação criadora. O que difere os escritores dos demais mortais é sua capacidade de trabalhar literariamente com sua experiência sensorial. Pode-se viver a mesma experiência rica, feliz ou dolorosa e não se ter como transformá-la em literatura.
A pena do escritor corre sobre o papel gravando sua avaliação pessoal do mundo que o cerca, o contexto histórico em que vive e o conjunto de relações interpessoais que compartilha. A literatura é filha de uma complexa teia que vincula o escritor a fatores que ele não pode controlar. Sua arte, quando ele é competente no que faz, consiste em um mecanismo possante que dá voz aos mortos e aos vivos. Age no lugar dos que não foram ou não são capazes de fazer o mesmo. Romances, contos, crônicas e outros escritos não aparecem casualmente. São objetos construídos com uma arquitetura que revela preferências, gostos e concepções. Estas remetem à experiência social do escritor.
O autor era um homem comum, no sentido social do termo. Lutou contra as adversidades da vida como qualquer outra pessoa de sua classe e etnia no mesmo contexto. Os problemas que o afetaram eram os mesmos que perturbavam o percurso de outros. Isto não bastava para que ele pudesse escrever o que foi capaz de fazer. O que nele havia de especial era o seu nível de instrução mais elevado, incomum nos homens de sua posição. Chegou a isto através existência de um protetor e padrinho, o visconde de Ouro Preto (1836-1912), político liberal e abolicionista no império e professor de direito na república, que permitiu que ele estudasse e alcançasse os estudos superiores. Ademais, ele tinha as condições psicológicas do literato. É impressionante constatar sua independência pessoal e sua reação a qualquer tentativa de manipulação dominadora, inclusive as tentadas pelo seu padrinho. Seus textos, claramente autobiográficos tais como o Cemitério dos Vivos e o Diário Íntimo, mostram como ele ruminava as suas histórias, retiradas do cotidiano e contadas, muitas vezes, em primeira pessoa.
Sua posição de narrador não era secundária ou esmaecida. Lima Barreto participava diretamente das histórias que contava. Sente-se ao lê-lo, que ele está claramente presente nos personagens que descreve e põe para representar. Seus anti-heróis são retirados de sua experiência pessoal. Por vezes, parece que através da literatura, ele buscava a cura de todos os seus males, deles, o mais grave, a melancolia. O tom melancólico dos seus personagens lembra o seu próprio modo de ser. Isto desagradou à crítica da época, acostumada a uma literatura sem sangue, suor, lágrimas, loucuras e embriaguez. Ainda menos, um autor que não se escondia atrás de sua pena e, ao contrário, falava de si próprio e de temas embaraçosos tais como: o do racismo; o da situação da mulher; o da superficialidade e indigência intelectual de membros das classes altas; com muita ênfase e o da vida social nos subúrbios pobres da velha capital. Por mais que fosse hilário, ele não escrevia para divertir. Por mais que os dramas narrados fossem pungentes, não desejava piedade. Queria justiça e paz entre os homens.
A crítica de época acusou-o de personalismo excessivo. Não compreendeu que seu estilo era composto exatamente desta peculiaridade. Não foi capaz de entender que seu memorialismo, muito longe do egocentrismo de outros, usava da fonte direta de sua experiência vivencial, sem esconder o fato dos seus leitores. Inúmeros escritores contemporâneos fizeram e ainda fazem o mesmo, reafirmando o método de Lima Barreto.
Se compararmos os dados biográficos disponíveis com a obra do autor, não é difícil entender que ele tenha sido, quase sempre, o personagem central do que produziu. Havia razões de sobra para que ele gravasse com sua pena, sua vida e suas concepções de mundo. Estava em uma posição desfavorável, bastante isolado e com problemas de toda ordem. O procedimento mais comum de uma pessoa que tenha vivido como ele, seria o de não escrever ou de o fazer de acordo com um projeto de adesão ao status quo. O que valoriza seu esforço foi o fato de não ter cedido às pressões e de não ter feito uma literatura para agradar o poder. Seu caráter polêmico o levou a escrever para compreender a si próprio e aos que o cercavam. Sua capacidade de escrever era a única arma que tinha em mãos para se defender dos preconceitos e continuar sua senda até o final.
A mesma crítica não viu com bons olhos, a incorporação da linguagem popular. Dizia que o escritor escrevia sem o cuidado necessário, de modo desalinhado. O fato de que ele captasse e grafasse a fala do povo do Rio de Janeiro incomodava. De algum modo, o escritor sabia que a língua verdadeira não era a dos salões e das academias. Forjava-se nas ruas, na conversação interpessoal, na oralidade dominante de um país de poucos letrados. Entender isto como falta de cuidado era uma maledicência ignara. Confundiam-se, propositadamente, os poucos recursos editoriais do autor, com sua maravilhosa capacidade de trazer para a literatura brasileira a gestualidade e a fala urbana dos homens e das mulheres mais comuns.
A literatura de Lima Barreto deve muito à sua experiência no jornalismo carioca e a sua leitura detida da imprensa brasileira e francesa. Antes de ser um escritor, ele foi um jornalista. Foi nas redações que aprendeu a desenvolver seu método, observando como se fazia para atrair a leitura dos mais ou menos letrados. A outra dívida com o jornalismo é de natureza moral, ou melhor, da crítica à moralidade do trabalho intelectual. Refere-se à sua percepção ácida dos que escreviam para atender os poderosos e para encher os bolsos com o vil metal. O que ele assistiu nas redações permitiu-lhe traçar um perfil pouco edificante de vários membros dessa profissão. Não poucos dos seus ‘colegas’ devem ter detestado o que leram sobre si próprios, em especial, no livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, escrito em 1908, publicado pela primeira vez em Lisboa, no ano de 1909. Obviamente, isso lhe fechou portas, dando-lhe em retribuição, o reconhecimento do valor do ethos de sua construção literária. Ao optar pela legitimidade de seu trabalho intelectual, ele se transformou em um grande autor.
O projeto estético de Lima Barreto pode ser depreendido de seus romances e contos. Sua noção de beleza o levou para longe do formalismo de vários de seus colegas. Acreditava que o belo estava na explosão da vida concreta em todas as suas manifestações mundanas e profanas. Não lhe seduzia a metafísica de uma arte literária afastada da descrição e da análise do mundo social. O que lhe interessava era criar personagens, baseados em modelos vivos. Trazer para literatura sua experiência, pela qual sempre pareceu apaixonado. Disse no Cemitério dos Vivos: “Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.” A literatura era, para ele, o sentido de sua vida. Era algo incorporado ao seu corpo e ao seu cotidiano. Não queria morrer, no sentido físico do termo, e nem abdicar de uma vida de autor.
O que ele pedia da literatura? Ela era para ele a conseqüência lógica de sua existência. A leitura dos seus textos sugere que via nela uma forma de se tratar, de sentir-se melhor e de poder encarar a vida de frente, sendo uma espécie de autoterapia. Não era uma fuga, muito menos um deleite ou simplesmente um modo de ganhar a vida. A literatura concorria com o álcool, o inebriava certamente mais do que o segundo e lhe fazia capaz de ter alguma felicidade. Pensava que por meio da arte literária poderia vencer os preconceitos e as adversidades e ser aceito no meio dos seus iguais. Imaginava sua arte como algo que deixaria sua marca e lhe permitiria intervir na realidade objetiva. Não foi exatamente isto o que ocorreu. Mesmo assim, não há registros de que ele tenha pensado, algum dia, em abandonar a literatura. Quis, sem sucesso, largar a bebida. Terminou falecendo próximo às suas duas amantes preferidas: a parati e a arte de escrever.
Um dos segredos de Lima Barreto foi o já mencionado hábito de transpor inovadoramente para as letras, a voz do povo das ruas. Ele foi capaz, fugindo ao formalismo gramatical do seu tempo, de transcrever a linguagem das pessoas simples, recriá-las com maestria. Não gostava, por exemplo, do seu contemporâneo Rui Barbosa, porque achava que ele sacrificava os fatos ao formalismo lingüístico, fazendo uma retórica vazia de sentido. Não deve ter sido fácil, para ele, conseguir desenvolver essa transcrição. Operava contra maré montante de uma literatura que valorizava o rigor gramatical, a forma, inibindo a importância do conteúdo. Não, casualmente, ele foi chamado em sua época de psicólogo. Suas observações sobre seus personagens revelavam suas características mais profundas, aquilo que não era possível, sem maior esforço, de se ver e nem de se escutar. Ele conseguia ir além, desnudando para os leitores as suas almas.
O autor manteve seu projeto estético, em tudo o que escreveu. Não fez concessões que o afastassem de uma linguagem acessível, objetiva e de fácil compreensão. Pensava que só assim estaria falando a verdade e reproduzindo os fatos na medida em que eles pudessem ser de fato compreendidos. Detestava a retórica dominante que tinha como missão impedir o acesso aos menos letrados, criar uma versão palatável e comportada dos acontecimentos e das crenças cultivadas pelas pessoas. Escreveu de modo direto, sem medo de abordar temas polêmicos, tais como o republicanismo sem mácula, o racismo à brasileira, a mítica de um país maravilhoso, as diferenças de classe, a ignorância e a impostura de pessoas com poder, dentre outros. Teve, na sua literatura, uma tensão constante entre sua escrita e a observação direta do real. Esculpia seu texto com o cinzel da crítica social e da crítica da cultura.
As histórias que contou nos seus romances e contos eram desenvolvidas em seu tempo. Elas testemunhavam acontecimentos candentes ou falavam de problemas sociais, políticos e culturais de grande magnitude. Através do desenvolvimento dos seus personagens e cenários, o autor construía um enredo onde tudo se encaixava sem maiores problemas. Conseguia fazer inflexões entre instâncias bem distintas, tais como as características pessoais, crenças e outros problemas de época. Conduzia seu roteiro religando o que colocava no seu texto, de modo que o leitor pudesse ter a sensação de que eram fatos e personagens reais. Na verdade, tratava-se de ficção habilmente misturada à realidade e de realidades vistas a partir do enquadramento do escritor. Seu estilo lembra o memorialismo de Machado, combinado com a crítica de costumes de Eça de Queiroz e de Balzac. Sua estética era de um refinamento ímpar, visando capturar seus leitores. A leitura dos seus textos continua provocando uma sensação prazerosa e de pertencimento à trama construída.
Falar de sua obra, sem falar de sua vida é tarefa quase impossível, por efeito das características de sua escrita. Lima Barreto foi um autor que derramou porções de sua experiência pessoal de vida ao longo de toda a sua obra. Do ponto de vista hermenêutico, crítico e de profundidade, a obra literária é sempre feita deste modo. A diferença e o que o torna moderno, é a assunção do seu sujeito criador. Não existe a preocupação de impedir que o leitor fique perguntando onde começa a ficção e onde termina o realismo dos fatos narrados. Ele produziu uma ficção assumidamente biográfica e historiográfica, isto é, ele misturou conscientemente fatos e imaginação literária. O resultado é uma ficção de qualidade ímpar que nos faz pensar no contexto onde foi gerada, preenchendo critérios contemporâneos. Ela conseguia completar o círculo hermenêutico, possibilitando o leitor compreender melhor o que ele queria dizer e sobre o que estava falando.
 
Um pouco da produção literária de Lima Barreto
Em português, não existem problemas para se ler Lima Barreto. Suas obras continuam disponíveis no mercado, nos mais diversos formatos e preços. Dormem nas estantes das melhores bibliotecas do Brasil e do mundo. Elas vêm sendo reeditadas espaçadamente nos últimos quarenta anos. Imagina-se que seus biógrafos e comentadores, mormente Francisco Assis Barbosa, foram responsáveis pela difusão de uma imagem positiva do autor, relativizando a conspiração do silêncio passada. Neste sentido, a crítica ao “biografismo” de quem estuda o autor é pouco procedente. Perscrutar e analisar sua vida são também formas de perceber de um dos sentidos mais fortes de sua literatura.
Atualmente, ele pode ser lido e consultado em vários sítios na Internet. A inexistência de direitos autorais a serem pagos e o interesse pelo autor explicam a forte presença dos seus textos na mãe de todas as redes. Quem consegue ler em português, pode ter acesso à sua produção, de qualquer parte do planeta onde existam conexões disponíveis. Muito se tem escrito sobre o escritor: inúmeros trabalhos acadêmicos e artigos literários em profusão. Passados 80 anos, o autor continua despertando o interesse público e até mesmo sendo motivo de um concurso literário patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em 2007.
O meio sorriso de suas fotografias, sua afiada ironia e prazer de viver, mesmo com tristezas e dificuldades, continuam presentes, desafiando as possibilidades de sobrevida literária de um autor brasileiro. De suas obras, as mais populares são o conto O homem que sabia javanês e o romance O triste fim de Policarpo Quaresma. Ambos penetraram no imaginário dos interessados na interpretação do Brasil. São referências ao caráter brasileiro, mesmo que, na verdade, tratem de questões universais. Em ambos, nota-se a crítica à ambigüidade barroca de nossa cultura oral. Neste contexto ideológico, as pessoas vivem entre o céu e a terra, flutuando na busca de seus caminhos. O autor possivelmente não compreendia teoricamente a presença do espírito barroco na cultura popular brasileira. Entretanto, foi capaz, como ninguém, de descrevê-lo em termos práticos, analisando o comportamento de personagens muito próximos à vida real.
No conto, publicado pela primeira vez no jornal carioca Gazeta da Tarde, datado de 28 de abril de 1911, Lima Barreto fala de um desses sábios de ocasião, especialistas em alguma coisa exótica. Alguém capaz de se adaptar às circunstâncias, sem qualquer pudor e com pouquíssimo esforço. Esta pessoa consegue enganar e se beneficiar, com a aprovação de um ‘cliente’ influente e de mais posses. O conhecimento do idioma ‘javanês’, sublinhado pelo autor, lembra a miríade de pseudos-intelectuais, que hoje inundam as mídias de todo o gênero. Em países menos letrados, eles fazem um sucesso imenso. Usam, com muita força, da eloqüência formalista para convencer a outros intelectuais, burocratas, políticos e, ainda mais facilmente às pessoas mais simples. Apesar deles serem numerosos no Brasil, no passado e no presente, isto não se trata de um problema estritamente local. A tal língua “malaia”, que realmente existe, foi imaginada pelo autor como uma metáfora de comportamentos que bem conhecia. Ele referiu-se também à fragilidade de auditórios pouco habilitados e à possibilidade de manipulá-los e tirar proveito da ignorância alheia.
O autor comentou o poder da eloqüência, que pode muito bem substituir o esforço do conhecimento. Quantos não sabem ‘javanês’ nos mais diversos espaços nacionais, sociais e institucionais? As exigências formais, a cultura dos currículos vitae, dos diplomas, das bolsas e dos cursos bem podem esconder um saber deficitário. A necessidade recorrente e o valor das apresentações ajudam a montar o quadro. O clientelismo funciona como pano de fundo na concretização das seleções, promoções, indicações e apadrinhamentos. Para completar, do ponto de vista do usuário do ‘javanês’, basta ser capaz de desprezar a ética e malandramente exibir um saber que impressione a quem também é superficial e incapaz de desenvolver um espírito crítico mais apurado. O idioma a que se refere Lima Barreto é muito usado e apreciado por inúmeras instâncias de poder, que o preferem frente ao real conhecimento. Se bem apresentado e capacitado a cumprir com maestria o teatro da competência, o pretendente a algum cargo tem verdadeiras chances de consegui-lo. Os mais éticos e que dominam conhecimentos concretos são facilmente preteridos. Não se pode dizer que isto é uma regra absoluta, mas as evidências de ocorrerem essas situações são inquestionáveis.
O conto não mencionou o problema da esperteza, como algo externo à vida social. O esperto é, também, uma pessoa perfeitamente integrada - bem diferente do autor - que fala a mesma língua dos que os aceitam e promovem. O escritor referiu-se a um dos seus temas prediletos, as reais possibilidades de ascensão de alguém que não era de ‘berço’, numa sociedade que guardava aspectos do ritual aristocrático do passado. Ele, que foi preterido em vários momentos, entendia os mecanismos que o derrotavam. Preferiu denunciá-los, no lugar de fazer o mesmo que muitos outros. O escritor falou, igualmente, da dificuldade governamental de conseguir quadros, no processo de remontagem do Estado, que caracterizou a jovem república. Nesta realidade, comportar-se como o homem que sabia javanês era uma via - não usada pelo autor - para galgar postos e respeitabilidade.
Como nas suas demais obras, o autor parece se vingar literariamente de pessoas com quem conviveu. Ele não suportava a empáfia intelectual de seu tempo. As idéias contidas no conto em tela revelam, por extensão, que o problema continua a existir na contemporaneidade. Não raro, dentro e fora do Brasil, é fácil encontrar homens e mulheres experts na língua javanesa. De certo modo, o autor dá a receita que, como toda prescrição, pode ser atualizada e repensada em novos contextos.
É fácil aprender a ‘língua de Java’, lendo avidamente, por exemplo, orelhas de livros, estudando ciências nos periódicos pouco sérios, e ancorando seu saber em um único domínio, vinculado a meia dúzia de outros sábios de igual pretensão. Nesta mesma faina, o estudante do ‘javanês’ consulta fontes diversas, sem espírito crítico. O mesmo aprendiz deve reforçar o que já sabe, conversando e repetindo de ouvido, plagiando outros autores e tendo, principalmente, muito cuidado com os auditórios. Um dos segredos de um bom iniciado é o de dizer o que as pessoas querem ouvir, sem por em dúvida verdades consagradas. Outro é o de não ter qualquer prurido ético, ser capaz de falar ou escrever, com a propriedade dos nefelibatas, do que não sabe ou não tem condições de comentar. Com estes e muitos outros procedimentos, rapidamente o interessado alcança seu doutoramento nesta exótica linguagem.
Lima Barreto, neste famoso conto, descreveu e analisou, por extensão, o conhecido barroquismo, muito difundido no mundo ibero-americano, existente, porém e também, em outras plagas. Neste, a teoria é mais importante do que a prática e a explicação, mais significativa do que os fatos. A cultura ‘javanesa’ resultante - com mil perdões aos bravos habitantes da ilha de Java - peca por se basear em portentosos edifícios flutuantes no espaço sublunar. Estes, na busca desesperada de sustentação, lançam âncoras nas mais diversas direções. Nesta luta para se prender à terra, a retórica ‘javanesa’ ganha suas próprias peculiaridades, postando-se como a única expressão da verdade. Isto funcionaria como se o escritor destas linhas, as imaginasse que elas fossem mais importantes do que a leitura detida do conto citado. Acreditasse que suas explicações substituiriam a leitura do texto original. Certamente, outros comentadores acharão novos aspectos relevantes e irão propor novos entendimentos.
O romance mais conhecido e mais comentado de Lima Barreto - Triste fim de Policarpo Quaresma - foi escrito em três meses, entre janeiro e março de 1911. Foi publicado, pela primeira vez, como folhetim e no mesmo ano, nos periódicos Gazeta de Tarde e Jornal do Comércio. No texto, o autor resumiu suas opiniões sobre o entorno sociopolítico da época e contou uma história onde a comédia funde-se, em grande estilo, com a tragédia. O livro é um libelo literário contra as ingenuidades políticas do positivismo republicano, as arbitrariedades e excessos repressivos do novo sistema político, a retórica de um país grande e maravilhoso, que ‘esquecia’ da existência de inúmeros problemas sociais e culturais. O seu anti-herói - o major Policarpo Quaresma - era, ao mesmo tempo, positivista e barroco, usava os signos da filosofia do progresso, misturados aos velhos signos oriundos do fim da idade média européia. A obra descreveu a primeira década da república nascente, colocando-se em uma posição de muita decepção com o novo regime.
As relações do autor com o seu personagem central foram de muita duplicidade. Ele construiu um protagonista admirável. Ele era louco, sonhador e capaz de defender suas posições até as últimas conseqüências. Não há nada de pragmático em Policarpo. Ao contrário, ele era fiel às suas idéias, mesmo que as evidências dissessem que não estaria completamente certo. Parece com o Dom Quixote de Cervantes ou com os heróis de Calderón de la Barca. Não era corrupto e era incapaz de brandir seu ideário como uma arma real contra os descrentes. Era paradoxal. Há nele algo de Lima Barreto e das pessoas que conheceu. Quaresma era um ser híbrido, confuso no seu modo de ser e viver, claro na comunicação de suas opiniões. Tinha uma determinação cândida, e era incapaz de fazer o mal aos outros. O alvo do escritor não foi o seu personagem. Ele atirou contra o regime político e social. Ele percebeu a insensibilidade republicana com as diferenças e desigualdades. Policarpo não era o problema. A jovem república, com sua ortodoxia, podia vitimar até mesmo os que nela acreditavam. Não há como deixar de lembrar, lendo o livro, de um verdadeiro herói policarpiano: Euclides da Cunha (1866-1909).
Em 1908, foi publicado o livro Porque me ufano de meu país, escrito por volta de 1900, pelo filho do antigo protetor de Lima Barreto. O conde, de título outorgado pelo Papa, Afonso Celso de Ouro Preto (1860-1938), membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil defendeu circunstanciadamente a idéia do país maravilhoso, que tinha um futuro radioso pela frente. Estava, com esta obra, re-inaugurada a literatura ufanista, de amplo uso político no Brasil moderno. O nacionalismo ufanista foi fartamente usado pela velha república, voltando à tona na Era Vargas (1930-1954), pela pena de Stefan Zweig (1881-1942) e, bem depois, na época da ditadura militar (1964-1985).
Romancistas e poetas usaram suas penas para cantar loas à natureza ímpar, multicolorida e irreprovável do Brasil. Foi reinventado o mito dos resquícios do paraíso terrestre tão conhecido na época colonial, desde a famosa carta de Caminha. Este Brasil mítico jamais teve problemas sociais e raciais - o racismo nunca teria existido - e quaisquer outras dificuldades para crescer e se transformar em uma potência. A escravidão, apesar de alguns percalços, não tivera maior significação e sua aceitação pelos africanos foi consensual. A natureza e o homem convergiram em uma unidade capaz de tudo construir e viver em plena felicidade. Obviamente, a natureza teve um destaque muito maior, do que o dado às pessoas que formavam a população brasileira. Engendrava-se a ‘invenção’ do povo brasileiro, que tanto se discutiria nas décadas seguintes.
Afonso Celso chegou ao ponto de demonizar e relativizar a mestiçagem de negros e brancos, lembrando de seus alegados problemas. Dentre estes, destacou a imprevidência e a despreocupação com o futuro. Contudo, aceitou como positiva a dos mamelucos, mestiços de índios com europeus. Seguiu, com algumas mudanças tópicas, a crença da ciência positivista da época na inferioridade dos produtos da mestiçagem. Era voz corrente entre biólogos, geógrafos e sociólogos europeus e latino-americanos, a idéia que os mestiços carregavam os piores defeitos dos negros, dos índios e dos brancos. No Brasil, a tolerância maior aos mamelucos deve ser creditada ao racismo antinegro do movimento indianista do século XIX, capitaneado por José de Alencar. Buscaram-se as raízes nacionais nos índios, para ‘esquecer’ a presença negra. O conde de Ouro Preto citou o exemplo paulista, onde a maior presença dos mamelucos tinha origens coloniais, não citadas por ele, na escravidão dos índios até o século XVIII. Referia-se ao sucesso civilizatório da velha província e da cidade de São Paulo. Obviamente, o seu subtexto era relativo a forte presença dos italianos e outros europeus, ou seja, às zonas de branqueamento criadas pela política imperial. É de se supor que essa obra e estas idéias de origem racista tenham chegado às mãos de Lima Barreto e de que tenha sido uma das razões de seu romance policarpiano.
Outro possível motivo ou fonte de inspiração foi o envolvimento do autor, na qualidade de membro do júri, no julgamento de militares que haviam matado um estudante nas ruas do Rio de Janeiro. Os julgados acabaram condenados pelo crime que cometeram e o autor pagou parte da fatura com o impedimento informal que subisse na escala de promoções do serviço público, na Secretaria de Guerra do governo republicano. Havia uma justiça formal, composta por leis e procedimentos, e outra que punia por delito de opinião, sem precisar condenar abertamente. O antimilitarismo do escritor deve ter crescido muito como conseqüência do episódio. Seu horror às fardas transpareceu no corpo de sua obra. Os militares do seu tempo foram caracterizados como burocratas, pessoas de pouco talento e de poucas letras. Ele ridicularizou seus memorandos, posturas e acessos de autoritarismo. Percebeu que eles eram capazes de cometer barbaridades imensas, sob a proteção da república, criada através de um golpe de Estado militar. O destino final de Policarpo - seu fuzilamento - denotou o poder de síntese do autor, usado para sublinhar as teses que podem ser intuídas de sua obra.
A Revolta da Armada (1893-1894) foi o cenário final do livro em tela. Tratou-se de uma tentativa de putsch, que desandou em uma revolta militar, com ameaças da frota naval de bombardear e destruir a cidade do Rio de Janeiro. Alguns tiros chegaram a ser disparados na Baia de Guanabara, havendo mortos e feridos no mar e em terra firme. Houve, igualmente, episódios de combates ainda mais sangrentos, em Santa Catarina, na disputa pelo poder entre setores da Marinha e do Exército. Foram efetuadas inúmeras prisões e algumas execuções. Na disputa, apareceram interesses de retorno à velha monarquia e diversos descontentamentos republicanos com o governo de Floriano Peixoto. No romance, Quaresma foi preso e fuzilado sem clemência, mesmo sendo republicano e nacionalista. Os motivos de sua execução são sugeridos, propositadamente, de modo vago, pelo autor. Ele seria louco. Teria estado contra o presidente Floriano Peixoto. Seria o autor de uma carta, protestando contra as violências cometidas pelo governo, e assistidas pessoalmente por ele, na qualidade de oficial do Exército e carcereiro dos revoltosos. Possivelmente, o autor desejou gravar definitivamente uma imagem bastante negativa da chamada República da Espada, isto é, os dois primeiros governos militares da jovem república.
O argumento central do livro antepôs, inteligentemente, o ideário nacionalista e republicano de Policarpo à realidade política e social da época. Seu personagem era um major, profundamente ético e politicamente ingênuo. Seu modo de pensar era fiel a uma retórica que se revelou alienada e desprovida de sentido prático. O autor conduziu seu enredo, fazendo a etnografia literária do povo do Rio de Janeiro, mostrando a vida palpitando nas ruas e casas das classes pobres e das classes mais ricas. Não esqueceu de usar o livro para relatar, enquanto arte, suas experiências no hospício e seus problemas afetivos. Lima Barreto tratou da questão feminina, neste e nos seus demais escritos, de modo bastante delicado, afastando-se dos estereótipos sexistas hegemônicos no Brasil. As conseqüências do racismo, tema caro ao conjunto de sua produção, não consistiram, nesta obra, em uma questão central, apesar de surgirem em várias passagens.
Afinal, quem era Policarpo? Era branco? De onde vinha a sua ambigüidade e seu profundo senso ético? A quem queria o autor atingir com seus ‘disparos’ literários? O de fato ele desejava? Talvez, nem mesmo Lima Barreto seria capaz de responder completamente, sem deixar margem a dúvidas. Em um esforço de interpretação, Policarpo foi e continua sendo uma metáfora das possibilidades das retóricas nacionalistas e das proposições republicanas no Brasil. Seu fuzilamento seria a negação prática das mesmas, nas bases em que haviam sido constituídas. O autor estava à busca de um modelo político e social mais inclusivo de nação. Talvez, quisesse levar alguma consciência aos militares, imaginando que eles pudessem alterar seus papéis na construção nacional. Policarpo tinha as melhores qualidades de um homem formado pelo espírito barroco ibero-americano, com pitadas do positivismo científico do século XIX. Seu maior defeito era a ingenuidade. A leitura que seus algozes fizeram da mesma cultura era inquisitorial. No mesmo livro, o autor demonstrou a necessidade de aumentar a consciência crítica das camadas populares. Em suma, havia um cul-de-sac, não exatamente na obra do autor, e, sim, na história do país. Ele percebia o problema, o que já era muito para um escritor.
 
A questão racial
O problema do racismo perpassou o conjunto da obra de Lima Barreto. Em inúmeras passagens ele aludiu às dificuldades dos negros e mestiços. Reclamou de injustiças, discriminações e das dificuldades que os afro-descendentes enfrentavam no pós-escravidão. Falou de sua própria experiência, através de seus personagens. O autor não era exatamente um militante anti-racista, mas não conseguia achar natural o que se passava com sua etnia. Reclamava por respeito e direitos iguais de acesso ao saber e às possibilidades de vida dos brancos. Não aceitava as determinações racistas da sociologia e da biologia da época, e nem a idéia de que, com o tempo, as coisas melhorariam. Sabia que estava à frente de uma forte questão nacional, que impedia a concretização do projeto brasileiro. Nisto, não estava só. Possivelmente, deve ter conhecido a obra do sociólogo Manoel Bonfim (1868-1932) e talvez tenha ouvido falar de Manuel Querino (1851-1923). Entretanto, o modo de ver esses problemas, defendido pelo autor carioca, era certamente minoritário, em sua cidade natal e em seu país. Não havia interlocutores facilmente disponíveis. Sua literatura dialogava sobre o problema racial, na busca de cumplicidade com o seu público leitor, e sua compreensão baseava-se na vivência concreta. Ele entendeu, como ninguém, o sofrimento de sua gente. Fez dele, objetos literários pungentes.
No livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, a questão apareceu com muita evidência no episódio da prisão do principal personagem ainda jovem e estudante. O relato é tão realista que se tem a impressão que o autor usou do romance para contar algum episódio concreto de sua vida. O preconceito racial, ali descrito, não se dá de modo direto. Isaías ouviu a menção ao “mulatinho” que chegava para depor. Depois, percebeu, na violência da fala e dos gestos do policial, que já estava condenado por um furto que não tinha cometido. O que lhe salvou foi a alusão às suas relações com um jornalista branco, de origem estrangeira, conhecido e respeitado pela autoridade policial. Dito isto, a situação foi amainada e o personagem pode partir em paz. Isaías reclamou para si próprio, o fato de um funcionário público o tratar daquele modo. Sugeriu a responsabilidade do Estado na questão do racismo, quando decorrente do arbítrio de um servidor. O que se pode depreender é que, no início do século passado, as regras do racismo à brasileira já estavam bem estabelecidas.
O preceito da inferiorização das pessoas negras e mestiças não era transparente, surgia mesclado a outras situações. Nesta vertente do racismo, uma das estratégias de defesa era demonstrar ligações com os brancos e aceitar, o quanto possível, as regras do jogo. Isaías comentou, pela pena do autor, os efeitos deletérios do ódio racial, na sua personalidade. Os termos racismo e preconceito racial não foram usados pelo autor. Ele, através de seus personagens, sentia ódio e usava esta palavra para designar o seu sentir. Trabalhava com a expressão humana, isto é, com a voz das emoções. Não era sociólogo e nem tinha muita teoria para explicar o que via e sentia. Mesmo a palavra raça, de uso bastante forte pelas ciências da época, não foi usada pelo autor para falar do problema do racismo. Todavia, ele foi capaz de compreendê-lo em toda sua carga emocional.
No Triste Fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto usou da discussão sobre os significados do Brasil, para valorizar o trabalho e a cultura afro-descendente. A escravidão, chamada pelo autor de “cativeiro”, rondava a vida do personagem central, tal como um espectro. Os negros, denominados de “pretos”, surgiram na trama com seu trabalho e seus saberes, tratados com imenso respeito. As palavras “mulato”, “mestiço” e “caboclo” foram usadas de modo parcimonioso. Serviram para designar conjuntos de pessoas, ou para questionar a tese evolucionista, inspirada em Darwin, que acreditava na inferioridade a priori dos mestiços. A cultura popular, reproduzida pelo escritor, denotou a forte influência indígena e negra nos espaços da língua, da cultura religiosa, da música, das festas e celebrações, da roupa e da culinária.
O Brasil do autor era muito diferente do país dos grandes intelectuais de seu tempo. Ao se deter sobre a vida das camadas populares, ele descreveu um povo em formação que cultivava valores afastados do eurocentrismo. Emergia no país uma forte e vibrante cultura não reconhecida pelas elites e pelo Estado da jovem república. O folclorismo e o empreendedorismo de Policarpo funcionavam como uma espécie de tentativa de unir a razão ocidental à esta experiência local. O personagem negava o racismo e afirmava as origens ameríndias e africanas, na construção da identidade brasileira. O romance destacou a possibilidade de uma construção diferente do espírito nacional. As desventuras policarpianas eram também as derrotas dos de baixo, bastante apartados das decisões políticas prevalecentes.
O modo do autor entender a questão racial, descrito acima, se manteve no conjunto dos seus romances e contos. No livro Clara dos Anjos, o tema racial retornou com vigor. A obra contou com dois personagens centrais: Clara, uma jovem mestiça das baixas classes médias e Cassi, um jovem branco da classe média mais rica e cheia de relações. O personagem masculino ficou conhecido nos subúrbios por colecionar defloramentos. Os movimentos de ambos, na teia do romance, são relativos aos hábitos do machismo ibero-americano e seus alvos entre os mais pobres, em especial, as moças não-brancas. O texto discutiu o problema da manipulação aplicado às relações afetivas e sexuais do Brasil da época. Referiu-se, igualmente, à situação das mulheres oprimidas em um contexto sexista hegemônico. Obviamente, seguindo a moral daqueles dias, o mito da virgindade, esteve presente do modo do autor conceber o problema. Como decorrência deste mito, as mulheres desvirginadas tinham muitas dificuldades para reorganizarem seus percursos.
Cassi fez de tudo para possuir Clara, cercando-a de todo modo. Há, na narrativa do autor, algo que pode ser lido como uma metáfora da relação entre as elites brancas, representada por Cassi, e grande parte de sua população, representada por Clara e sua família mestiça. O deflorador tinha a proteção da sociedade e do Estado. A sua próxima vítima contava com a do pai, que era carteiro, portanto, funcionário subalterno. A mãe, dona de casa, pouco podia fazer. O vilão conseguiu remover os obstáculos, entre eles o padrinho e protetor da donzela, assassinando-o, para obter o seu intento. Teve, então, a jovem como mais uma vítima de sua estranha coleção, continuando a agir de acordo com o seu padrão comportamental. Clara descobriu tardiamente a trama em que foi envolvida. A personagem revelou sua imensa dificuldade de entender a manipulação. Para compreendê-la, precisou sofrer na carne os seus efeitos. Em mais uma metáfora, o escritor comentou as dificuldades dos humilhados e ofendidos se defenderem, sugerindo a ingenuidade como uma das matrizes da manutenção do status quo. A presença desta personagem na literatura brasileira diferenciou-se das mulheres de José de Alencar e de Machado de Assis. Agora, havia mulheres mestiças, pobres e suburbanas em posição de destaque na ambiência literária brasileira.
A vida nos subúrbios da Central do Brasil, onde o autor morava, surgiu em detalhes minuciosos com o olhar arguto do escritor, no romance Clara dos Anjos. Suas descrições abrangeram paisagens, construções e pessoas, em um verdadeiro roteiro da vida que pulsava naqueles lugares. O cenário suburbano funcionava como um meio do autor desenhar o pano de fundo, onde o seu drama se desenrolava. O Rio de Janeiro dos pobres encontrou, neste e em outros textos de sua lavra, seu memorialista competente. Ele não deixou de incluir a descrição do centro da cidade, que era o lugar de trabalho dos suburbanos e o espaço onde se desenvolviam laços sociais das mais diversas ordens. Textos como este são escassos. Eles constituem uma preciosa fonte historiográfica. O livro em tela foi reescrito, em sua última versão ainda inacabada, entre dezembro de 1921 e janeiro de 1922, portanto, em dois meses. Só foi publicado pela primeira vez em 1948, logo, mais de vinte anos após a morte do escritor.
 
À guisa de conclusão
A literatura de Lima Barreto teve o propósito consciente de fazer a crítica social e de cultura do Brasil. Ele acreditava na função política do que escrevia, o que não o impedia de fazer arte. Sua concepção estética não era panfletária. Não escrevia para educar as massas, para agradar um partido ou fazer propaganda. Talvez, desejasse que elas o compreendessem e agissem de modo diverso. Esteve mais perto de um Tostoi, de um Dostoiévski, do que dos livros mais incendiários de Gorki. Seu engajamento era, sobretudo, literário. Como escritor, se imaginava como alguém que era a voz dos humilhados e ofendidos de seu tempo. Seu maior empenho era pelo Brasil e pela questão dos afro-brasileiros do pós-escravidão. Todavia, ele demonstrou vivo interesse em questões mais universais tais como: a força da burocracia esmagando as possibilidades de cidadania, de modo nítido no livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, publicado em 1919, e pronto desde 1907; o problema da mediocridade, do charlatanismo e dos sistemas de mérito viciados, amparados por redes de clientela, que são presentes, praticamente, em todas suas obras; a luta contra a ignorância e todas as formas de preconceitos conhecidas - o autor gravou com a pena de escritor, sua indignação em relação ao ódio à inteligência, o sexismo, os demais preconceitos sociais e as objeções à liberdade de consciência; a questão da corrupção na política oficial e a necessidade da construção social inclusiva das sociedades oriundas do passado colonial, como parte das estratégias democráticas modernas.
O nacionalismo de Lima Barreto era de tipo especial. Ele não foi seduzido pela idéia de grande pátria determinada por sua geografia, clima e história. O seu Brasil era mais real e nada ufanista. O seu desejo era o de contribuir, por meio da crítica, na solução dos problemas que lucidamente apontou. Entendia que o país, para vencer os seus obstáculos, tinha que apreender a conviver com a crítica e os argumentos dela decorrentes. Não caiu no niilismo criticista. Por mais que tivesse visto e vivido situações desesperadoras, o autor acreditava nas possibilidades do seu país. Era diferente dos que se diziam ultranacionalistas, a partir de posturas eurocêntricas, desejando que o Brasil fosse uma continuação da história européia. Via o país a partir de sua realidade objetiva, a qual sempre desejou desnudar. Sabia que o Brasil não era a Europa e nem a África. Compreendia as particularidades do país que amava, como um filho que deseja que o lar materno seja mais justo e mais livre de desigualdades. Era aberto às influências que vinham de fora. Admirava a cultura francesa e a literatura russa. Não muito lhe apetecia o que vinha dos EUA. Mas conhecia a língua inglesa e alguns dos seus clássicos literários. O autor não tinha um espírito provinciano e nem se sentia inferior frente à literatura universal. Fazia o seu trabalho como brasileiro e para o seu país. O reconhecimento e a atual difusão internacional de alguns dos seus livros veio sem que ele buscasse este espaço. Ele jamais foi um carreirista. Sua arte era de intervenção no real, sem a preocupação de agradar o campo literário existente, em detrimento da qualidade estética e do ethos do que produzia.
A literatura foi a principal atividade da vida adulta de Lima Barreto. Seu corpo fundiu-se com a mesma e isto, certamente, ajudou a apressar o seu fim prematuro. Viveu para escrever, escreveu para viver. Sua paixão pela escrita era sem limite, lembrando a de alguns autores românticos que o precederam e mais ainda os barrocos de um passado mais distante. As únicas coisas que dividia com a literatura era o gosto pelo álcool e por intermináveis passeios a pé e de bonde pelas ruas do Rio de Janeiro que tão bem conhecia. O trabalho como funcionário público era só para sobreviver. Não era louco. Mas a bebida provocou-lhe problemas que o levaram por duas vezes ao hospício e a outros tratamentos médicos. Do manicômio, descreveu a vida dos loucos e suas semelhanças com a dos ditos sãos. Nada escapava à sua capacidade de observar e de escrever sobre o que vivia. Sua experiência de funcionário público civil, na área militar, permitiu-lhe conhecer de perto os militares e falar sobre os mesmos em seus textos. Seu trabalho de pequeno burocrata deu-lhe condições de criticar profundamente a burocracia brasileira. A vida no subúrbio forneceu-lhe imenso material para escrever sobre os pobres de sua cidade. Sua inteligência permitiu-lhe compreender os desvãos da intelectualidade da época, que olhava para seu próprio umbigo ou para um ponto distante mar adentro. O fato de ser um mestiço, de origem negra, foi usado como mais um dos seus objetos literários e lhe deu um sentido moral na vida, no país da escravidão. Tudo isto enquadrou as possibilidades que teve para fazer uma literatura de qualidade e ofertá-la à sua e às próximas gerações.
A relação de Lima Barreto com a língua portuguesa o diferenciou e ainda hoje causa polêmica. Curiosamente, algumas críticas de época são ainda repetidas. É verdade que seus livros nem sempre foram bem cuidados do ponto de vista editorial. Este problema esteve relacionado à sua posição no campo literário e não à sua capacidade lingüística. Ao contrário, o autor produziu inúmeras inovações trazendo para a literatura a fala dos pobres da cidade do Rio de Janeiro. Foi diligentemente capaz de capturar a língua dos não-letrados e dar a ela sua versão literária. Obviamente, isto ofendeu a alguns puristas e ainda pode causar problemas para o olhar formalista e pautado no ideal gramatical de uma língua pretensamente perfeita. Ele trouxe para a literatura valores culturais e crenças sociais das pessoas mais simples. A modernidade do seu texto bebeu na sua militância jornalística, como também no seu ouvido crítico de homem que vivia nas ruas de sua cidade, prestando enorme atenção ao modo que as pessoas se comunicavam. Ao contrário, por exemplo, do contemporâneo Rui Barbosa, o autor em tela queria se comunicar com os seus leitores menos letrados. O escritor nunca aceitou a idéia de falar “javanês”, preferia compreender a língua do seu povo e, usando sem o saber de um preceito moderno, transformá-la em objetos literários. Por isso, merece o título do homem que sabia português. Não o falado nos salões e nos bairros nobres, e sim o idioma que vários dos seus colegas faziam de conta não existir. A diferenciação pelo uso da língua é um expediente muito conhecido, mundo afora, para sublinhar e manter distinções sociais. Nada disso impediu que ele também conhecesse e usasse o idioma em sua forma erudita, obviamente, sem exageros e apelações.
Lima Barreto continua sendo um autor que merece ser lido e compreendido pelas novas gerações. Alguém que fala de um país real, de seus problemas e da força de sua cultura. Talvez, hoje, mais do que em sua época, existam melhores condições para que ele seja reconhecido pelo seu mérito, tal como ele sempre desejou. Sua obra é muito importante para o projeto de valorização do povo brasileiro, das mais diversas cores e origens. Seu amor pela inteligência e sua aversão à superficialidade são ‘vacinas’ para problemas que teimam em existir no Brasil e no mundo. No mesmo escritor, estão elementos significativos da possível construção de uma identidade social, política e cultural mais inclusiva e capaz de colocar o Brasil e os brasileiros sintonizados na atual fase da modernidade. O anti-racismo do autor e sua origem étnica mestiça podem ajudar a aumentar a auto-estima dos que ainda são, de algum modo, flagelados pelo ódio. Lê-lo e compreendê-lo significa continuar a amar o Brasil, mesmo vivendo longe da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
 
© Luís Carlos Lopes 2008
Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid

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