domingo, 9 de março de 2014

Te Conti, não ? - Machado de Assis - 100 anos depois

por OSWALDO FAUSTINO | ilustração LEANDRO VALQUER
"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria"
(DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS - MACHADO DE ASSIS)
 
 
A herança - ou legado - de Joaquim Maria Machado de Assis, cujo centenário da morte se completa neste ano, não pertence a ninguém em particular, mas à humanidade. Um tesouro cultural que a maioria dos brasileiros desconhece e que estudantes, muitas vezes, rejeitam quer por desconhecer sua riqueza quer pela obrigatoriedade da leitura. Afinal, tudo o que é proibido é prazeroso, já o que é obrigado...
 

Então, esqueçamos os vestibulares, os trabalhos escolares e as provas. Em vez disso, vamos saborear a genialidade deste cronista, contista, romancista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, ensaísta e crítico literário. Como afirma a mestra em Educação pela UFScar Regina Helena Moraes: "Preto, mulato, branco, judeu... a obra de Machado ultrapassa todos os limites cromáticos e étnicos. Ele rompeu as fronteiras de um grande escritor. É um gênio da literatura nacional e universal".
Na criação de seus personagens, desmascara suas almas - como se os olháspor semos pelo buraco de uma fechadura -, revelando os valores corrompidos da burguesia do século 19, quando o Rio de Janeiro era a capital do império e dos primeiros anos da República. Estão ali desnudados o egoísmo, a ganância, o adultério, a falta de solidariedade, a ignorância, a idiotice, o parasitismo, a beatice, o fingimento, a ausência de sacralidade da Igreja, entre outros.
Ao desvelar o âmago desses tipos humanos, critica a sociedade de seu tempo. Em suas memórias póstumas, por exemplo, o personagem Brás Cubas afirma sobre a primeira mulher por quem se apaixonou: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis". Com metáforas e sagacidade, por vezes uma ironia ácida, ele usa a sugestão para que formemos nossa opinião sobre os fatos narrados. Afinal, em Dom Casmurro, Capitu - com seus olhos de ressaca - traiu Bentinho, ou não?
MUITOS FICAM SURPRESOS AO SABER DA ASCENDÊNCIA AFRICANA DE ASSIS. ELE ERA NETO DE ESCRAVOS ALFORRIADOS E SUA MÃE ERA PORTUGUESA.
Volta e meia alguém se surpreende ao saber da ascendência africana de Machado de Assis. Seus retratos, principalmente depois de maduro, geralmente não fazem jus a essa informação. Já os da juventude revelam a mestiçagem deste escritor que jamais saiu do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu em 21 de junho de 1839 e onde faleceu, aos 69 anos, em 29 de setembro de 1908, em sua casa no bairro de Cosme Velho. Seu pai, o pintor de paredes Francisco José de Assis era filho de escravos alforriados e a mãe Maria Leopoldina Machado de Assis era portuguesa. O escritor também se casou com uma portuguesa da Ilha dos Açores, Carolina Augusta Xavier de Novais, com quem viveu por 35 anos, até a morte dela, em 1904. Como Brás Cubas, ele também não teve filhos.
Se estivesse lendo esta matéria, Machado certamente torceria o nariz, diante do parágrafo que se segue. Mas é impossível não revelar sua infância humilde, no Morro do Livramento, e a fragilidade de sua saúde. Era epiléptico e, menino, deve ter amargado muitas gozações por ser gago, canhoto - quando só era considerado normal o destro - e extremamente tímido. Vítima da crueldade das crianças para com os que são diferentes. Não bastassem tais dificuldades, a morte arrebatou-lhe a mãe e a única irmã muito cedo. Ele odiava ser apontado como exemplo de superação.
A madrasta Maria Inês, uma lavadeira negra, assumiu a criação do menino. Foi ela quem o matriculou na escola pública, que ele freqüentou por curto período, e quem o levava à igreja da Lampadosa, onde Machadinho era coroinha. Quando tinha 12 anos, o pai também morreu e o garoto mudou-se com a madrasta, que também era doceira de mão cheia, para São Cristóvão. Como milhares de outras crianças, também viveu a tragédia do trabalho infantil, vendendo doces que Inês fazia.
 
O que diferencia os campeões dos fracassados? Sorte? O apoio de alguém?
Ambos são muito importantes, mas o fator principal são o empenho, a dedicação e, em alguns casos, a obsessão. Assim era o jovem Machado de Assis. Depois dos primeiros anos de escola pública, tornou-se autodidata, sob a orientação de um padre. Teve aulas de francês com a dona de uma padaria de São Cristóvão e "devorava" os livros da biblioteca da madrinha, Maria José de Mendonça Barroso, patroa de Inês e viúva do brigadeiro Bento Barroso Pereira, senador do império.
Contrariando a tendência francesa da intelectualidade brasileira, Machado também estudou inglês e assim pode ler clássicos da língua inglesa, que o influenciaram, como os de William Shakespeare, Edgar Allan Poe e do poeta Wordsworth, que afirmava: "A infância deixa rastros em nossa memória, como sulcos num rosto ou num campo lavrado". Inspirado nesta frase, escreveu a crônica intitulada: "O menino é o pai do homem", sobre o peso da infância na formação de nossa vida adulta.
"MACHADO DE ASSIS É O MAIOR ESCRITOR AFRODESCENDENTE DE TODOS OS TEMPOS", AFIRMA O RENOMADO CRÍTICO NORTEAMERICANO HAROLD BLOOM
E foi lendo muito e aprendendo sozinho outros idiomas, como o alemão, que se transformou no "maior escritor afro-descendente de todos os tempos", conforme afirma o crítico literário norte- americano Harold Bloom. Até chegar lá, porém, trabalhou de balconista, vendedor, aprendiz de tipógrafo e, mesmo famoso pelas crônicas, novelas e contos publicados em jornais e revistas e também por seus livros, ocupou vários cargos no funcionalismo público.
Seu primeiro poema, "Ela" foi publicado na revista Marmota Fluminense, aos 16 anos. E o primeiro livro a trazer a sua assinatura foi a tradução de um livreto francês, que ganhou o título de "Queda que as Mulheres Têm para os Tolos", que demonstra o bom humor e o espírito irônico, que o levaram a integrar-se à sociedade lítero-humorística Petalógica., fundada pelo editor Francisco de Paula Brito, que reunia boêmio e intelectuais da época. Foi criticado por não ter participado diretamente das lutas sociais de seu tempo, como as que levaram à abolição da escravatura e à derrubada do império. "Com uma canção também se luta irmão", cantou Wilson Simonal, e Machado o fez com seus escritos. O pesquisador de literatura brasileira, Mauro Rosso conta que até como alto funcionário do Ministério da Agricultura - órgão que tratava da política das terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre -, ele "emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a lei e sobre o preceito de liberdade para os filhos de escravos".
Sua negritude também é questionada, não só pela pele clara e pelos cabelos apenas ondulados, mas por ter, aparentemente, vivido apartado das comunidades negras e da cultura afro-brasileira. Acusam-no até de ter liderado a campanha que barrou o ingresso do poeta negro Cruz de Souza na Academia Brasileira de Letras, da qual é fundador. Contradições à parte, não seria de se estranhar que o mais importante escritor brasileiro refletisse o sonho de branqueamento, que sempre norteou a cultura e as elites deste que é o país com a maior população negra fora da África.
A doutora em educação pela USP, Sueli Carneiro, diretora da ong Geledés - a Instituto da Mulher Negra, ressalta a forma categórica com que as elites brasileiras "para ofertar-lhe o reconhecimento a um talento, que não podia ser negado, teve que o destituir das marcas de sua negritude". E relembra como o poeta Olavo Bilac se referiu ao escritor: "Machado de Assis não é um negro, é um grego'".
Negro para nós, ou grego para eles, Machado é para sempre. E 100 anos após sua morte, ninguém conseguiu ainda superar a organização da linguagem machadiana. Se os poemas de Oswald de Andrade são "biscoitos finos", as obras de Machado de Assis são deliciosos manjares, banquetes inteiros para serem saboreados lentamente, bocado a bocado. Neles, a sociedade brasileira está inteira. Como era no século 19, como é hoje e como jamais deixará de ser.

Revista Raça Brasil

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