terça-feira, 18 de março de 2014

Artigo de Opinião - Meu 1º de abril de 1964

A ditadura me atingira na pele, pela primeira vez, para mais tarde me prender por quatro anos (1969-1973) e cassar por dez meus direitos políticos

O DIA
Rio - Na data do golpe militar, eu participava em Belém (PA) do congresso latino-americano de estudantes. As notícias chegavam confusas. Pelas ruas, viaturas militares. Lideranças estudantis de outros países do continente preferiram dissolver o congresso. 
Como membro da direção nacional da Ação Católica, eu estava hospedado na residência do arcebispo D. Alberto Ramos, a convite de seu auxiliar, D. Milton Pereira. Na noite do 1º de abril, vi na TV o arcebispo agradecer à Virgem de Nazaré por livrar o Brasil do comunismo e sugerir que entre o clero havia influência marxista. D. Milton aconselhou-me buscar refúgio fora dali. 
Jango fora deposto e se exilara no Uruguai. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumira a Presidência da República sob tutela dos militares, que impunham eleição presidencial a 11 de abril, pelo voto apenas de membros do Congresso Nacional que ainda não haviam sido cassados. 
Após nove dias, decidi retornar ao Rio, onde morava. Minha passagem aérea tinha sido cedida por Betinho, então chefe de gabinete do ministro da Educação, Paulo de Tarso dos Santos. Na Varig, fui informado de que haviam sido canceladas todas as passagens de cortesia emitidas pelo “governo anterior”. Na capa havia o carimbo de “Cancelado”. Rasguei-a e estendi-a ao funcionário, que avisava não ter mais assento vago em voos diretos para o Rio, só com escala no Recife. 

Cheguei à capital pernambucana a 10 de abril, dia da posse de D. Helder Câmara como arcebispo de Olinda e Recife. Ele fora o responsável pela minha transferência de Minas para o Rio e cuidava da manutenção do apartamento das direções da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica). 
D. Helder ouviu o relato do que eu presenciara em Belém. Na volta ao Rio, viajei ao lado de D. Cândido Padin, bispo auxiliar do Rio e assessor nacional da Ação Católica. 

Ao aterrissar, o piloto avisou que a Polícia Federal entraria para conferir a identidade de cada passageiro. Passei a D. Padin os documentos do congresso de estudantes. Ele os escondeu dentro do hábito. Ao entrar no avião, os policiais viram D. Padim: “O bispo pode desembarcar”, disseram. Todos os demais fomos identificados e revistados. 
Na madrugada de 5 para 6 de junho de 1964, o apartamento da direção da Ação Católica foi invadido por agentes do Cenimar. Fomos levados presos para o Comando Naval e depois para o quartel dos fuzileiros navais, na Ilha das Cobras. A ditadura me atingira na pele, pela primeira vez, para mais tarde me prender por quatro anos (1969-1973) e cassar por dez meus direitos políticos.


Frei Betto é autor de ‘Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira’ (Rocco)

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