sexta-feira, 14 de março de 2014

Artigo de Opinião - Trama sem Historia - Joel Rufino dos Santos

Escravidão, para dona Edite, minha primeira professora de História, eram negros no tronco, trabalho de sol a sol, separação de pais e filhos pela ambição desenfreada dos amos, senzala. Esse inferno acabou quando abolicionistas que achavam a escravidão uma vergonha nacional intercederam junto à princesa Isabel para promulgar a Lei Áurea. A boa da dona Edite não podia ver a escravidão como vemos hoje: primeiro capítulo da globalização capitalista, um processo civilizatório cujo motor, paradoxalmente, foi um sistema de tortura sistemática — as três coisas entrelaçadas. Vemos isso hoje porque somos gente de hoje.
O ganhador do Oscar, “12 anos de escravidão”, é muito bom. Só um problema: não escapa ao senso comum sobre o que foi esse fenômeno histórico, no Brasil e nos Estados Unidos. Alguém vai responder que um filme não é uma aula de História. Felizmente, digo eu. Ocorre que filmes, romances, peças, seriados de televisão, discursos de políticos podem fazer pior — podem alimentar, com seu poder de sedução, ideias ilógicas e sentimentos elementares. Filme é filme, mas o de Steve McQueen está no nível das aulas da saudosa dona Edite (com todo o respeito).
Dona Edite teve uma premonição: antes de Isabel (nos Estados Unidos, antes de Lincoln), o negro só se tornava livre com espírito de superação, ajudado por um branco (no caso do filme de McQuen por um canadense). É assim que um cego se torna, na paralimpíada, o melhor jogador do mundo, uma menina favelada entra no balé Bolshoi, um lavrador da Paraíba se torna spala da OSB... A chave é superação.
Bem, o filme é uma “história de superação”. Uma boa história. Qual o problema, então? É que “história de superação” é fórmula vulgar para suprimir a História. No caso do filme, o que ele suprime da história da escravidão americana? Que o avanço do capitalismo no Norte do país criou um embrião de burguesia negra que prosperou, enquanto no Sul, pré-capitalista, sob domínio da grande plantação, o máximo a que o negro chegava era a servidor doméstico (inclusive violinista). Houve no Brasil, também, um embrião de burguesia negra — explorando as sobras humanas da própria escravidão — nos últimos anos da monarquia, estrangulada pelo subcapitalismo liberal da fase seguinte. O Brasil, até a metade do século XX, foi um grande Mississipi.
Dona Edite me lembra que um filme não é uma aula de História. Ela tem razão. Para não perder a discussão, digo que “12 anos de escravidão” é um trompe l’oeil, expressão antiga que se traduz como “engana-olho”, o que está ali para se pensar que o falso é o verdadeiro.
O fato é que Edite adoraria o filme. Só faria uma questão, para me arrasar: “Se a escravidão brasileira foi suave, em razão do caráter do nosso povo, e a americana foi tão cruel, como explica aquelas casinhas tão jeitosas de madeira em que moravam os pretos?”
A professora de História é a senhora. Sai de fininh

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