Joaquim Barbosa
Apresentado por muitos como uma espécie de herói do século 21, Joaquim Barbosa também aparece agora chamuscado pelas sucessivas demonstrações de autoritarismo
iG
Fosse em 2012 a publicação deste perfil, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, se veria em melhor posição no ranking do iG para a escolha dos mais poderosos homens e mulheres do Brasil na economia e na política. Barbosa, sublinhe-se, ainda é um dos homens mais influentes da República, como atesta o número estampado acima. Mas já não se revela tão majoritária assim a interpretação de que se está diante de um dândi de virtudes éticas e heroicas, um cavaleiro disposto a enfrentar as resistências em busca de justiça, o protagonista supremo de uma surpreendente guinada do STF - uma mudança no funcionamento da Suprema Corte, capaz de fazê-la abandonar os rapapés aristocráticos de sua liturgia para a pregação, por alguns de seus ministros, de que pode funcionar também para ricos e poderosos.
Não é bem assim. Primeiro porque aconteceu algo que há pouco tempo soaria inimaginável para assuntos relacionados à Ação Penal 470, mais conhecida como o "julgamento do mensalão": a divisão da Corte. Não exatamente uma divisão, convém dizer, se são inocentes ou não os réus, mas se cabe a 12 dos 25 condenados o direito a um novo julgamento. Com placar em 5 a 5, o STF julgará neste final de inverno a decisão sobre a admissibilidade dos chamados embargos infringentes. O voto de minerva caberá ao ministro Celso de Mello. Independentemente da decisão proferida pelo decano do Supremo, trata-se da expressão da perda de vigor sobre os ministros das pressões vocalizadas por Joaquim Barbosa e amplificadas por boa parte da mídia impressa e televisiva do País. Ou simplesmente - tanto faz - é resultado da mudança na correlação de forças do STF, cujo tom de equilíbrio seu atual presidente insistia em tornar monocórdio com a braveza de um tribuno convicto de que os indícios apresentados por ele eram verdades jurídicas incontestáveis.
Não é bem assim, repita-se. Nem Barbosa é o símbolo do triunfo da justiça no Brasil, tampouco juízes são imunes à influência das queixas públicas. Mas não está escrito nas estrelas - agora está claro - que se pode ignorar o caráter que estes mesmos juízes revelam (e o livre arbítrio de que dispõem) ao resistir submeter suas decisões à inescapável pressão da opinião pública e publicada. Ao mesmo tempo, porém, em que chega até aqui ainda apresentado por muitos como uma espécie de herói do século 21, a voz preferida de quem acredita termos chegado ao limite da tolerância com a calhordice no poder, Joaquim Barbosa também aparece agora chamuscado pelas sucessivas demonstrações de autoritarismo, pelos gestos de desprezo à opinião dissonante, pela liderança do bloco dos membros mais ferozes e persecutórios, que fizeram a Corte contaminar-se pelo discurso de ódio e vingança - algo raríssimo na história da Justiça brasileira.
Ecos da história do bravo "Fritz"
Diz-se que o menino Joaquim jamais se acomodou àquilo que o destino lhe reservara. Nos informes públicos de sua vida, conta-se que ele cresceu ouvindo dos adultos que nas festas de aniversário de famílias mais abastadas deveria ficar sempre no fundo do salão. Comeria doces apenas quando alguém lhe oferecesse, assim era a recomendação. Seria a sina marcada para o filho de um pedreiro, nascido em Paracatu, no interior de Minas Gerais. Ali recebeu ainda muito cedo dos colegas o apelido de "Fritz", trabalhou com o pai (morto em 2010) ajudando a fazer tijolo e apresentou, prodigamente, hábitos surpreendentemente estranhos: lia tudo o que passava pela sua frente, escrevia no ar, cantava em outros idiomas, andava com o peito estufado, imitando gente importante. A família de oito filhos ganharia alguma prosperidade, mas antes chegaram a morar numa casa onde não havia nem sofá, geladeira ou televisão. Mesmo assim, Joaquim, dizem amigos, não sucumbia à condição de negro humilde e pobre. Não se subordinava.
Em 1971, a família mudou-se para Brasília, 250 quilômetros distante de Paracatu. Na capital, Joaquim formou-se em Direito pela Universidade de Brasília, onde manteve o bom hábito da leitura. Conheceu Dostoievski, Gorki e Tolstoi e depois a literatura francesa, inglesa e americana. Gosta de Eça, Lima Barreto e Machado de Assis e, à sombra dos mestres, critica o tom pomposo da linguagem jurídica brasileira.
Passou no concurso para oficial de chancelaria do Itamaraty e, em seguida, no concurso para procurador da República. Fez doutorado na Sorbonne, em Paris, foi professor visitante na Universidade Columbia, em Nova York, e na Universidade da Califórnia. Sua carreira acadêmica, aliás, é igualmente vitoriosa. Além dos títulos, recebeu algumas bolsas de estudo e escreveu dois livros de Direito, além de diversos artigos. Fluente em inglês, francês e alemão, tem no currículo palestras internacionais, a maioria das quais abordando a questão racial e o direito das minorias.
Contra as engrenagens brancas e conservadoras
Esse foi, é e, ao que parece, sempre será uma âncora no pensamento de Joaquim Barbosa. Sua experiência pessoal justifica tal ênfase. Ele chegou a trabalhar como oficial da Chancelaria do Ministério das Relações Exteriores em Helsinque, na Finlândia. Realmente sonhou ser diplomata, mas foi reprovado na entrevista do Instituto Rio Branco, o que lhe pareceu ser um gesto de racismo. Esse mesmo racismo ganha, porém, outras evidências, como o desigual tratamento reservado pela Justiça a brancos e negros. "As pessoas são tratadas de forma diferente", diz Barbosa, "de acordo com seu status, sua fortuna e a cor da sua pele: isso tudo tem um papel enorme no sistema judicial, especialmente em relação à impunidade."
Reafirmando sua capacidade de surpreender, o mesmo herói de boa parte da imprensa voltou-se contra esta ao participar de um evento sobre liberdade de expressão, em maio. Em San José da Costa Rica, durante um congresso promovido pela Unesco, ao longo de um discurso pronunciado em inglês, o ministro disse que os principais jornais impressos do País pecam pela "falta de pluralismo" e pela "fraca diversidade política e ideológica". Em outro momento, afirmara: "A imprensa brasileira é toda ela branca, conservadora. O empresariado, idem. Todas as engrenagens de comando no Brasil estão nas mãos de pessoas brancas e conservadoras."
Se o homem público ocupa as manchetes, a vida privada revela-se bastante discreta. Separou-se recentemente da mulher com quem se relacionou durante 12 anos e tem um filho de 28 anos, Felipe, que vive em um apartamento no Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, cidade que adora com a mesma força que detesta o ar seco de Brasília. Conjuga um estilo de vida simples com hábitos sofisticados. Passeia, com igual desenvoltura, pelo gosto da música clássica ao de Zeca Pagodinho, da preferência pelos ternos importados ao apego a um carro fabricado num já longínquo 2004.
Humilde destempero, sempre ele
Tamanha dualidade, como se vê, faz parte da sintaxe do presidente do Supremo. É a zona exposta e ao mesmo tempo sombria da personalidade do ministro. Uma faceta dupla capaz de despertar a admiração sem filtro pela humildade e pelo exemplo de superação do histórico de preconceitos, e simultaneamente fazer emergir um olhar de dúvida e inquietação pelo modo imperial com que conduz os debates jurídicos no âmbito do STF. O ápice desse estilo deu-se na sessão de 15 de agosto. Durante um debate sobre um recurso do ex-deputado Bispo Rodrigues, Barbosa tachou de chicana a análise do ministro Ricardo Lewandowski. Em outras palavras, acusava o colega de manobra jurídica para dificultar o andamento de um processo, pela apresentação de um argumento com base num detalhe irrelevante. Na cosmologia do Direito, atribuir o qualitativo de chicaneiro a alguém, carimbando-o como autor de tramoias processuais para ganhar tempo, equivale à pior das ofensas. Lewandowski rebateu imediatamente e pediu que Barbosa se retratasse, o que ele não fez e, em seguida, encerrou a sessão.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) emitiram nota na qual afirmaram que "a insinuação de que um colega de tribunal estaria a fazer 'chicanas' não é tratamento adequado a um membro da Suprema Corte brasileira". Não foi a primeira discussão pública na qual Barbosa esteve envolvido. Ante as perguntas de um repórter, o ministro o chamou de "palhaço" e mandou que fosse "chafurdar no lixo". Mais tarde, por meio de uma nota assinada pelo secretário de comunicação do STF, pediu desculpas e afirmou que a forma ríspida da conversa fora motivada "pelo cansaço e por fortes dores". Em abril deste ano, em uma conversa com representantes de classe, acusou os juízes de participarem de "maneira sorrateira" da aprovação pela Câmara dos Deputados da criação de quatro novos tribunais regionais, o que envolveria um gasto bilionário para a União. Causou outro mal-estar cujas feridas estão longe de cicatrizar.
Do grão-mestre do julgamento do chamado mensalão ao destemperado presidente do Supremo, a biografia de Joaquim Barbosa promete novas reviravoltas. Há quem fale numa candidatura a presidente, e pelo sim, pelo não, seu nome já é posto nas sondagens pré-eleitorais promovidas pelos institutos de pesquisa.
"Se queres conhecer o vilão, dê-lhe o bastão"
Assim afirma a sabedoria popular portuguesa, com base em experiência de origem medieval: "Se queres conhecer o vilão, dê-lhe o bastão (poder)". A máxima pode valer para os críticos dos réus da Ação Penal 470 - aqueles que pedem pressa para a condenação exemplar - mas serve também para os críticos do estilo de Barbosa à frente do processo e, em especial, no comando das sessões do Supremo. Adaptá-la à análise do perfil do ministro cabe bem mais a operadores do direito e a críticos de veio político e psicanalítico. Mas não há como escapar da identificação de algumas possibilidades: tal estilo seria resultado de características forjadas pelas circunstâncias? Do desejo de cumprir sua missão de pregador das virtudes éticas e morais? Ou do acúmulo de inquietações demonstradas por ele em vida, que tem muito a ver com sua cor, sua classe social originária, os preconceitos sofridos e a estupenda ascensão que protagonizou ao longo dos seus 59 anos (a serem completados em outubro)? Ao leitor está franqueada a escolha
Fonte: iG
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