domingo, 2 de março de 2014

Te Contei, não ? - O Carnaval de Manuel Bandeira

A palavra Carnaval, cuja datação, conforme Huaiss, é de 1542, advém do latim medieval (carneleváre ou carnileária) e diz respeito à véspera da Quarta-Feira de Cinzas: o dia em que se inicia a abstinência de carne exigida na Quaresma. O passar dos tempos converteu-a na acepção de uma festa popular, em que os valores da cultura sofrem uma subversão
O pintor francês Jean Baptiste Debret chegou ao Rio de Janeiro no mês de março de 1816, numa expedição artística organizada por Dom João VI, aí permanecendo até 1831. Ao longo desse período, além do retrato de figuras da Corte, dedicou-se ao registro de cenas cotidianas; dentre as obras dessa natureza, destaca-se o quadro "O Entrudo", ou seja, o nome por que era denominada a festa hoje Carnaval.

A partir de então, os artistas, de diversos ramos da criação, passaram a interessar-se por essa manifestação cultural, de cores singularíssimas no Brasil, integrada, assim, ao nosso patrimônio imaterial.

No campo da literatura, incontáveis poemas acerca do carnaval já foram compostos; muitos escritores, por outro lado, cultivaram a literatura carvanalizada, isto é, quando expressões típicas dessa festa são transpostas para a escritura; porém, apenas o poeta Manuel Bandeira fez do carnaval o motivo maior de uma obra.
Um poema-livro
Publicado em 1919, o livro de poemas "Carnaval" concentra-se, predominantemente, em torno do tema anunciado no título, implicando, assim, uma unidade de tratamento. Sendo uma forma sincrética de espetáculo, correspondendo a um ritual, o carnaval oficializa a transgressão, revoga todas as leis, dissolve as hierarquias, cola ao rosto a máscara que os homens disfarçam nas relações cotidianas, pondo a nu a verdadeira face do avesso.

Manuel Bandeira, em "Carnaval", percorre tudo isso, com notas de humor amargo, ironia fina, expondo, assim, o eu lírico à galhofa pública, às vezes numa auto-humilhação, outras numa autocomiseração. Quanto aos recursos estilísticos, mostra-se ainda preso às heranças do Parnasianismo e do Simbolismo, com uma clara predileção pelo verso rimado e metrificado, sem as licenças literárias que o tornariam, mais tarde, um modernista maior, unindo simplicidade e beleza.
A abertura
"Epígrafe" é um poema em prosa, bem ao gosto de simbolistas como Charles Baudelaire; funciona como uma espécie de síntese dos demais poemas da obra, isto é, anuncia o misterioso, o trágico, a melancolia que sobre eles irão se disseminar. O eu lírico mostrar-se-á atraído pelo vício, pelo sofrimento, pela morbidez: (Texto I)

No primeiro movimento, infere-se o espaço de um baile à fantasia, consoante a sugestão da atitude inicial: "Ela entrou..."; em vez da espontaneidade, da descontração natural às comemorações festivas, há todo um tom de artificialidade, de esforço por integrar-se ao ambiente: "com embaraço"; "tentou sorrir" - sem levar em conta o ar de tristeza que envolve a mulher, cuja identidade permanecerá anônima. Uma pergunta perturba, então, o leitor: quem é essa mulher? Sendo o carnaval o espaço do disfarce, é possível lê-la como uma espécie de duplo do eu lírico - a alegoria de sua amargura, de sua incurável melancolia, pois, durante o percurso de todo o carnaval, ele será tocado por uma indelével inércia espiritual, um sentimento de desilusão, fruto de sucessivas perdas, que o levará, inexoravelmente, a uma desolação sem igual.
Bacanal
A partir de tais considerações, não deixa de ser intrigante a feitura do segundo poema do livro, sob o título "Bacanal". É uma composição de seis quartetos, com rimas emparelhadas, apresentando o mesmo aspecto rítmico: os três primeiros versos são octossílabos; e o quarto, tetrassílabo, configurado, portanto, como binário descendente; como um traço de inovação em relação à poética desenvolvida por seus contemporâneos, oriundos do Parnasianismo, destaca-se o emprego de rimas toantes, em passagens como: " caco / Baco"; fraco / Baco", bem como a estilística da repetição: (Texto II)

A nota que se sobressai nessa poesia é a artificialidade com que o eu lírico insiste em mostrar-se como um folião entregue, de corpo e alma, aos prazeres das brincadeiras e à concupiscência. Pretende, a princípio, embriagar-se, em meio a paixões também inebriantes; aspira a que a "alma", por fim, seja laçada pelas variegadas "serpentinas dos amores" - sintetizadas estas por uma metáfora de rara plasticidade: "cobras de lívidos venenos". O texto "Bacanal" é composto por dois movimentos, implicando dois estados de espírito: no primeiro (as quatro primeiras estrofes), há um tom frenético, eloquente, declamatório - e tal resulta do enorme esforço do eu lírico em parecer aos outros devasso, libertino, dado totalmente a múltiplos prazeres; no último movimento, o ritmo é lento, monótono, quando, finda a folia, é banhado por sensações de cansaço físico, dores corporais e decomposição moral, tudo sob a égide do arrependimento. Mais uma vez, surge uma metáfora lancinante: "O alfanje rútilo da lua" - o "alfanje", arma de origem oriental, é sabre de lâmina curta e larga, com o fio no lado convexo da curva; desse modo, no plano figurado, alude a uma das fases crescente ou minguante da lua.
À deriva
Alguns poemas do livro "Carnaval" não se enquadram na temática proposta pelo título; dentre eles, o mais famoso é o poema "Os Sapos", em que o autor tece uma crítica, irônica e cáustica, aos cânones do Parnasiano, num grotesco duelo (alegórico) entre poetas; mas outra peça, sob o título "Debussy", é de inquestionável valor literário, uma vez que aponta elementos que constituirão, definitivamente, a poética de Manuel Bandeira: a linguagem simples, coloquial, a extrema musicalidade obtida pela consciência plena da elaboração do verso livre: (Texto III)

Para aproximar-se da música, Bandeira serve-se da onomatopeia, na sugestão de um movimento pendular, em direção do vago e do fugidio, em notas que parecem dissolver-se.

TRECHOS
TEXTO I
Ela entrou com embaraço, tentou sorrir, e perguntou tristemente - se eu a reconhecia? O aspecto carnavalesco lhe vinha menos do frangalho de fantasia do que do seu ar de extrema penúria. Fez por parecer alegre. Mas o sorriso se lhe transmudou em rito amargo. E os olhos ficaram baços, como duas poças de água suja... Então, para cortar o soluço que adivinhei subindo de sua garganta, puxei-a para perto de mim e, com doçura: - Tu és a minha esperança de felicidade e cada dia que passa eu te quero mais, com perdida volúpia, com desesperação e angústia... (p. 157)
TEXTO II
Quero beber! Cantar asneiras / no esto brutal das bebedeiras /que em tudo emborca e faz em caco... / Evoé Baco! /// Lá se me parte a alma levada / no torvelim da mascarada, / a gargalhar em doudo assomo... / Evoé Momo! /// Lacem-na toda, multicores, / as serpentinas dos amores, / cobras de lívidos venenos... / Evoé Vênus! /// Se perguntarem: Que mais queres, / além de versos e mulheres?... /-Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!... / Evoé Baco! /// O alfanje rútilo da lua, / por degolar a nuca nua / que me alucina e que eu não domo!... / Evoé Momo! /// A lira etérea, a grande Lira!... / Por que eu extático desfira / em seu lavor versos obscenos, / Evoé Vênus! (p. 157-8)
TEXTO III
Para cá, para lá.../ Para cá, para lá... / Um novelinho de linha... / Para cá, para lá... / Para cá, para lá... /Oscila no ar pela mão de uma criança / (Vem e vai...) / Que delicadamente e quase a adormecer o balança / - Psiu... - / Para cá, para lá... / Para cá e... / - O novelinho caiu. (p. 168)



CARLOS AUGUSTO VIANAEDITOR                                                                          

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