Percebemos que a música lembra muito uma rotina. As estrofes parecem todas encaixadas sobre uma mesma fôrma, inclusive com versos semelhantes, e repete várias vezes, sempre começando do início e continuando na mesma ordem. E, o mais interessante, começa de manhã, depois vai pra hora do café, depois o almoço, a volta do trabalho e a hora de dormir.
Chico Buarque
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã.
“Todo dia ela faz tudo sempre igual / Me sacode às seis horas da manhã”- retratam aqueles minutos iniciais do dia. Ela, a mulher, acorda o marido sempre às seis da manhã.
“Me sorri um sorriso pontual / E me beija com a boca de hortelã”- a expressão “sorriso pontual” é muito interessante, porque parece que coloca o ato de sorrir, que seria como um cumprimento de “bom dia”, como um ato mecânico, um sorriso sempre dado no mesmo horário. A boca de hortelã parece ser por causa do aroma da pasta de dente, geralmente com sabor de hortelã, menta etc.
Na outra estrofe, “Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar / E essas coisas que diz toda mulher”- representam aquele cuidado rotineiro que as mulheres têm, dando os conselhos anteriores ao trabalho. Tanto é que quando ele diz
E essas coisas que diz toda mulher”- dá uma ideia de que são conselhos dados por costume, em todos os lares, todos os dias. Logo após,
“Diz que está me esperando pro jantar / E me beija com a boca de café”- representam uma despedida seguida por um beijo com o sabor do café da manhã.
“Todo dia eu só penso em poder parar / Meio dia eu só penso em dizer não”- são versos que denotam aquela sensação de cansaço, de fadiga do trabalho. Dá vontade de parar, de dizer ‘não’. Esses dois versos, que poderiam significar uma certa insatisfação com o cotidiano repetitivo, se contrapõem aos próximos:
“Depois penso na vida pra levar / E me calo com a boca de feijão”- quando o homem submete-se à rotina e se cala; em meio a um momento de questionamento, segue-se um silêncio, típico da submissão.
“Seis da tarde como era de se esperar / Ela pega e me espera no portão”- mostram a falta de novidade. Se no trabalho não há nada que desperte o interesse do homem, tampouco isto ocorre quando ele chega em casa, quando tudo ocorre exatamente da mesma maneira. A expressão “como era de se esperar”, embora esteja mais disfarçada na música, são usadas de modo satírico, ironizando a reiteração de hábitos. Logo após,
“Diz que está muito louca pra beijar / E me beija com a boca de paixão” -são dois versos também irônicos, porque num contexto preenchido de monotonia, a vontade de beijar com paixão parece um desejo distante, mais idealizado do que real.
Na próxima estrofe: “Toda noite ela diz pra eu não me afastar / Meia noite ela jura eterno amor”- vemos o medo seguido por um sentimento barato. Jurar eterno amor é um sentimento profundo, mas do jeito que é apresentado pela letra, ocorrendo todos os dias de noite, contribui mais para a construção da imagem de insegurança do que de amor mesmo. Além disso, essa ideia é reafirmada em
“E me aperta pra eu quase sufocar / E me morde com a boca de pavor”.
Logo após, a música recomeça. A primeira estrofe é também a última, um efeito muito útil quando se quer dar uma ideia de continuidade. No caso, não há início, clímax, desfecho. Parece tudo parte de uma cadeia sem fim que é a rotina. E não uma rotina qualquer. Chico aproveita para denunciar a opressão sobre a população em plena ditadura.
É o retrato de um sentimento nacional, da vida asfixiada, sufocada, do povo sob o regime militar. Não havia encanto nenhum na vida do casal, tudo parecia pré-determinado. O casal era composto por um homem que sustentava a casa e mulher que atendia aos seus anseios, isto é, aquele velho modelo desgastado do cotidiano, sem espaço para rompimentos.
O homem aparece quase que na música inteira como sujeito passivo: “me sacode”, “me sorri”, “me beija”, “me esperando” etc. E quem é o agente da passiva? A mulher? Não, embora seja a mulher que praticasse aquelas ações, estas não eram decididas por ela, pois já estava tudo programado na rotina do casal. Assim, fica sugerido que este “ela”, que faz quase tudo na música, não é bem a mulher, mas a mulher servindo como fantoche do cotidiano opressor, e vivendo à sombra do marido. Os dois, portanto, eram manipulados pelo ciclo diário, não havia poder de decisão.
Contribuição do aluno Orlando / Turma 901 / 2013
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