sexta-feira, 14 de junho de 2013

Crônica do Dia - O Miojo não criativo

Quando alguém fala maravilhas sobre colégios públicos de antes dos anos 1950, pergunto: qual a porcentagem das crianças em idade escolar que estava matriculada?

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Quando escuto alguém falando maravilhas sobre colégios públicos brasileiros de antes dos anos 1950, sempre pergunto: qual a porcentagem das crianças em idade escolar que estava matriculada naquele tempo? Havia, sim, qualidade em algumas salas de aula, e até o ensino de latim ou bordado. Mas esse serviço, incluindo as palmatórias, era privilégio de uma minoria. Da década final do século XX para cá, convivemos com a inédita universalização do acesso à escola, num país com população muitas vezes maior, no meio de uma baita crise mundial de fundamentos pedagógicos. Claro que todo o processo aconteceu aos trancos e barrancos. Vai demorar ainda muito tempo para haver nivelamento qualitativo geral, se é que isso vai acontecer numa realidade ostensivamente mutante. Mas não tenho dúvida: prefiro a situação atual, com todos os seus problemas, do que aquela anterior que servia biscoitos finos para poucos, assim contribuindo para a perpetuação de nossa vergonhosa desigualdade.
Muitos dos que suspiram ao lembrar seus liceus estaduais foram agentes da “decadência”. Ricos e poderosos, quando identificaram as primeiras dificuldades, retiraram seus filhos das escolas públicas, transformando-as em estorvo distante para o tal “Estado” (visto como entidade quase alienígena, mesmo quando quem reclama é seu funcionário de alto escalão). O “abandono” hoje se completa com a atual orkutização de escolas americanas e afins, subordinadas a diretrizes educacionais formuladas por governos estrangeiros que não elegemos e sobre os quais não temos nenhum controle — deixamos que povos mais “desenvolvidos” decidam o que e como nossas crianças devem aprender. (E, pronto, vou falar: MBA é o cacete! Também nada pode ser mais caipira do que esses escritórios que universidades do “primeiro mundo” tentam implantar por aqui para salvar seus “modelos de negócio” que não se sustentam mais apenas em ambiente G7).
Claro que reconheço: vivemos situação trágica em termos educacionais. Mas ensino não é só responsabilidade da escola, sobretudo no momento atual da História brasileira. Não houve tempo para formar professores ou mesmo construir salas de aulas para toda a população que de repente começou a estudar (e convive em casa com pais para quem essa oportunidade foi negada). Fico revoltado quando vejo os jornais zoando com as redações do Enem, numa tentativa de desqualificar toda essa experiência (que ninguém sabe se vai dar certo) de criar uma alternativa para o mecanismo ultrapassado do vestibular, tudo por causa de um aluno que copiou receita de Miojo na sua redação. Esperavam o quê? Uma multidão de Machados de Assis?
Gostaria de saber como essa redação específica vazou para a imprensa. E por que as primeiras páginas dos jornais entraram na zoação. Não vou comprar essa briga. Quem leu minha coluna da semana passada sabe que eu acredito que “a vida foi feita para cantar e zoar”. Então vou zoar de volta. Devo confessar: adorei a redação do Miojo. Coincidiu que na época eu estava lendo “Unoriginal genius”, o livro da professora emérita de Stanford (viu como também gosto de ser caipira?) Marjorie Perloff (obrigado, Arto Lindsay, pela indicação de leitura), que me parece a obra mais importante sobre literatura publicada em tempos recentes. É um tratado que nos prova que o lema de Gaby Amarantos (“eu vou samplear, eu vou te roubar”) está na base dos avanços mais importantes da poesia contemporânea. Ken Goldsmith, um dos autores analisados por Perloff (junto com os irmãos Campos e Walter Benjamin) e que já publicou livro só com colagens de textos de previsões do tempo, chama essa tendência de “uncreative writing”. Sendo assim, tenho o dever de indagar: não será o autor da redação do Miojo um gênio não original brasileiro, bem mais criativamente não criativo que os jornalistas que zoaram com sua escrita?
Vou seguir o exemplo desse nosso gênio não original anônimo — pode haver algo mais genial do que se apropriar de uma receita de Miojo? Nota máxima para a não criatividade! — e terminar esta coluna abrupta e desconexamente, sampleando um bifão do livro do Roberto Calasso, “A folie Baudelaire” (que é feito para se ler aos poucos, uma página e uma iluminação por dia): “Toda a história da literatura — aquela secreta, que ninguém será capaz de escrever jamais, a não ser parcialmente, porque os escritores são muito hábeis em dissimular — pode ser vista como uma sinuosa guirlanda de plágios. [...] Escrever é aquilo que, como o eros, faz oscilarem e torna porosos os anteparos do ego. E todo estilo se forma por sucessivas campanhas — com pelotões de invasores ou exércitos inteiros — em territórios alheios.”


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-miojo-nao-criativo-8270824#ixzz2WFJVNnoy

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