quarta-feira, 12 de junho de 2013

Te Contei, não ? - O colapso da política indígena

O modelo de demarcação de terras para índios, que hoje ocupam 13% do território nacional, revela-se esgotado e o governo discute o que fazer para pôr fim aos conflitos

por Izabelle Torres
Inspirada pela Constituição de 1988, a política indigenista brasileira encontra-se numa encruzilhada. Depois de distribuir cerca de 113 milhões de hectares de terras entre 800 mil índios, uma partilha que faz com que os indígenas, hoje 0,47% da população brasileira, usufruam de 13% do território nacional, parece claro que se chegou a uma situação em que urgem reformas e mudanças. Em nome de uma tarefa histórica necessária – preservar uma cultura que distingue o país e integra a memória da nação –, criou-se uma partilha que não interessa mais a ninguém. Nem aos descendentes dos primeiros brasileiros, que têm direito ao bem-estar e ao progresso do século XXI, nem ao conjunto do País, que procura espaços e caminhos para um desenvolvimento para beneficiar uma população de 190 milhões de brasileiros.
 
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MARCANDO POSIÇÃO
Índios Mundurukus fazem vigília em frente ao Palácio do Planalto na terça-feira 4
 
 
 
No conflito por terras reivindicadas por indígenas, há interesses desiguais e variados. Os arquivos do governo registram nada menos do que 4.200 requerimentos de grandes empresários interessados em garimpar em terras indígenas em busca de ouro e outros minerais. A maioria dos conflitos em curso, no entanto, mobiliza brasileiros comuns na luta sempre dura pela sobrevivência. São pessoas com renda muito baixa, na maioria. Nos dois lados, há quem queira a terra para plantio. Mas também há quem queira terra para arrendar ou vender – como é tão comum na agricultura de hoje – ou mesmo para receber royalties pela exploração do subsolo. O formidável desenvolvimento do agronegócio, nos últimos anos, criou uma nova prosperidade no mundo rural brasileiro. Há crédito farto para a lavoura, os investimentos não param de crescer e dão retorno em dólar. Grande parte do PIB brasileiro depende disso. Mesmo numa hora difícil para a economia mundial, as comoditties agrícolas representam um tesouro respeitável. Neste compasso, ocorre uma situação previsível. Há cada vez menos terra disponível para um número cada vez maior de interessados.
Na metade de seu mandato, que pode ser descrito como um esforço tremendo para criar novas bases para a retomada de um desenvolvimento que se mostra muito mais difícil do que a herança do antecessor, Dilma Rousseff já cravou o recorde negativo de partilha de terras indígenas. Aprovou oito declarações e homologou 11 iniciadas por governos anteriores. Luiz Inácio Lula da Silva declarou a propriedade de 81 terras aos indígenas, enquanto Fernando Henrique Cardoso concedeu 118 declarações. Fernando Collor, que tomou posse no momento em que as pressões de ambientalistas e ONGs devotadas à cultura indígena se encontravam no apogeu, fez ainda mais: assinou 58 decretos e 112 demarcações. Os números de Dilma exasperam as lideranças indígenas e fazem dela e de seus ministros um alvo permanente de críticas. Mas não expressam má vontade nem perseguição. São parte do esforço para construir uma nova política.
 
 
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UM NOVO PAC?
Governo Dilma estuda promover obras de infraestrutura  em aldeias. No alto Xingu (foto), a situação é precária
 
 
Ao mesmo tempo que questiona a atual forma de distribuição de terras, o Planalto está convencido de que a questão indígena deve ser tratada como assunto de Estado, numa postura que guarda alguma semelhança – embora sejam assuntos de caráter diferente – com a proteção dos direitos da mulher e o combate ao racismo. O governo acha que a Funai, autarquia sob responsabilidades do Ministério da Justiça, com poder de tutela sobre os índios, é um instrumento político frágil demais para dar conta do que precisa ser feito. Também considera que lhe falta representatividade política para responder por uma situação delicada. Vista com bons olhos pelo Planalto, circula pelos gabinetes do Congresso a proposta de se aprovar uma PEC destinada a garantir, para deputados e senadores, a palavra final sobre as demarcações de terras indígenas. Com isso, em vez de deixar nos ombros de antropólogos com diploma universitário uma decisão que diz respeito ao País inteiro, transfere-se a responsabilidade para cidadãos eleitos pelo voto popular. Numa iniciativa que vai nessa direção, o governo já conseguiu um parecer da Advocacia Geral da União que permite ao Ministério da Justiça intervir na questão indígena mesmo sem aval da Funai.
Pelo mesmo caminho, a ideia de se criar uma Secretaria Nacional dedicada aos povos indígenas, com status de ministério, chegou a circular pelo Congresso. Daria uma maior autoridade a seu ocupante – que teria acesso direto à Presidência da República – e, ao menos em teoria, um espaço maior para o encaminhamento de problemas e soluções. Não foi adiante porque se considerou que o nascimento de mais um ministério seria um desgaste desnecessário. Mas a ideia de dar um novo tratamento permanece. Também se fala em obras de infraestrutura em aldeias. Traduzindo para o mundo Dilma, o que está se falando é de um possível PAC indígena.
 
 
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Na semana passada, o País assistiu a um conflito típico de uma situação transitória, em que regras antigas não funcionam mais, mas ninguém sabe como a vida vai ficar daqui para a frente. Esperando há três anos pela homologação de uma área de 17 mil hectares em Sidrolândia, em Mato Grosso, que chegou até a ser publicada no Diário Oficial, um grupo de índios da nação terena decidiu invadir a fazenda Buriti, que pertence ao ex-deputado estadual Ricardo Bacha. A fazenda faz parte da área legalmente destinada aos índios, mas Ricardo Bacha queria ser indenizado antes de deixar o local. A Justiça Federal determinou a saída dos índios e deu prazo para que fossem embora. Como isso não aconteceu, os policiais cumpriram ordem de invadir o local. Ocorreu um confronto e o índio Oziel Gabriel, de 35 anos, foi atingido e morreu à bala. Depois, outro indígena tomou um tiro pelas costas.
 
 
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Segundo o cacique Otoniel Guarani, 252 indígenas já foram mortos em Mato Grosso do Sul. “E dois corpos nunca foram devolvidos”, denuncia. Em função da violência, a crescente capacidade de mobilização dos índios brasileiros ficou demonstrada mais uma vez. Ocorreram manifestações em 50 pontos do País, inclusive na Praça dos Três Poderes. Com seu talento especial para encontrar holofotes, os habitantes do Xingu entraram no Planalto, onde foram recebidos pelo ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, para pedir a interrupção da usina de Belo Monte. “Lutamos por muitas coisas e não vamos baixar a cabeça para o que querem fazer com a gente. O governo não quer dialogar e tenta decidir sem nos consultar. Isso não vai acontecer antes de lutarmos até o fim”, diz Valdenir Munduruku, um dos porta-vozes da luta contra a construção da Usina de Belo Monte. Para Cleber Buzzato, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, em pelo menos 30 pontos do país podem ocorrer conflitos a qualquer momento. “Estamos diante de um processo violento de violação aos direitos dos povos indígenas. Eles perceberam que não podem ficar parados vendo isso e decidiram se unir para lutar,” diz Buzzato. “Os índios brasileiros não devem ser recolhidos a um museu,” afirma o senador Wellington Dias (PT-PI), com seus cabelos finos, a pele avermelhada e os olhos puxados típicos dos primeiros brasileiros. Para o senador, “os índios precisam de infraestrutura, de casa com banheiro, hospital e escola”.
 
 
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RADICALIZAÇÃO
Em Sidrolândia (MS), índios terenas rasgam ação de despejo (acima).
Em abril, pataxós ocuparam a BR-101, na Bahia, provocando transtornos
 
 
 
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Na vida cotidiana dos índios brasileiros, é possível assistir iniciativas de quem, como filho do mesmo solo e da mesma cultura, sempre busca um jeito de melhorar a própria situação. No Acre, os Apurinãs apresentaram na Assembleia Legislativa um projeto de lei que oficializa a cobrança de pedágios na BR-317. No sul do Amazonas, o cacique geral da etnia Munduruku, Natanael Parente, liderança tão respeitada que já fez discurso no Congresso durante um Dia Nacional do Índio, chegou a ser custodiado pela Polícia Federal por tentar implementar na aldeia um sistema de visitação de turistas que renderia dinheiro para a tribo. Os indígenas do século XXI querem ter carros, motos, adoram internet e telefone celular. Vivem em sociedades tradicionais, conhecem seus valores, mas foram jogados na selva cultural do mundo moderno e não têm alternativa senão conviver com ele. “Nas aldeias temos celulares, televisão, carros. Estamos preparados e conscientes dos nossos direitos justamente por isso”, diz o cacique Lindomar Terena, filiado ao PT e ex-candidato a vereador.
Há sinais – menos saborosos e mais preocupantes – de um convívio com o mundo dos brancos e o tradicional estilo de administrar conflitos no Estado brasileiro. Elaborado pelo antropólogo Edward Luz, circula pelo primeiro escalão do governo um estudo sobre 17 casos de falhas graves na análise das terras distribuídas pela Funai entre 2002 e 2012. O antropólogo reúne casos de arrepiar os cabelos. Revela que uma área de terras foi entregue a imigrantes peruanos e aponta para uma indesejável influência de investidores estrangeiros na demarcação da terra indígena Patuá, no Baixo-Madeira. Os casos de falsificação de identidades indígenas, necessárias para ter acesso às propriedades, são múltiplos e variados. “Eu participei da maioria dessas análises como antropólogo e presenciei essas irregularidades. São dezenas e está tudo documentado esperando providências dos órgãos de controle”, diz Edward.
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No Rio Grande do Sul, os processos judiciais denunciando irregularidades nas concessões de terras estão, em sua maioria, nas mãos do procurador de Justiça Rodney Candeia. Em uma das denúncias, o procurador mostra que, por trás das pressões dos índios por terras de pequenos agricultores em cidades como Mato Preto e Faxinalzinho, há o interesse dos indígenas de arrendar as propriedades para grandes fazendeiros. “Encontramos diversas irregularidades e omissões. A Funai deu laudos falsos sobre a existência de índios em terras que eles nunca ocuparam. Com isso, os indígenas conseguiam a propriedade e arrendavam para fazendeiros por preços altos. Tudo isso com a conivência de muitos órgãos”, afirma.
Criada pela chegada das caravelas de Pedro Álvares Cabral na Terra de Santa Cruz, a arquitetura da nação brasileira nasceu pelo convívio de culturas e sociedades muito diferentes. Os momentos de avanço foram registrados quando o país inteiro avançou, sem prejudicar parcelas menos protegidas em sua força e sua memória – e sem atrasar um país inteiro em nome de benefícios reclamados por uma parcela social menos numerosa. A prova de que sempre foi difícil encontrar um ponto de equilíbrio entre esses dois movimentos foi assinada pelo Supremo Tribunal Federal, quando deliberou por uma disputa de terras na Raposa Terra do Sul. A discussão envolveu debates, avanços e recuos dos ministros. Quatro anos depois, o STF ainda não publicou nem sequer os acórdãos da decisão, que poderiam orientar a ação dos interessados na solução de outros conflitos em curso no País. É mais um motivo para se debater uma situação urgente.
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Colaborou: Aline Santos, de Campo Grande

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