Antropofagia oswaldiana não é canibalismo, não é nacionalismo. ‘Bárbaro tecnizado’ é roquenrou: aí Lobão acertou
Estive lendo Lobão, “Manifesto do nada na terra do nunca”. Em meio à saraivada de opiniões no autêntico estilo rebelde adolescente tardio, me interesso pelo ímpeto mais ambicioso do livro: desmitificar o pensamento de Oswald de Andrade, num tête-à-tête irreverente e afinal amistoso com o autor do “Manifesto antropófago”. Nas primeiras páginas, Lobão dá uma amostra do seu método crítico. Diz que Oswald sustenta, no seu texto chamado “O antropófago”, que o homem é “um subanimal entre todos os animais”, pois demora vinte anos para amadurecer, enquanto “um elefante já está pronto para a vida adulta aos dois anos de idade”. Lobão entende que Oswald está julgando “o grau de evolução da nossa espécie” como inferior a todas as outras, e tira como consequência disso a ideia de que, para Oswald, “o trabalho é fruto do homem inferior”, pois o desejo mais profundo do homem é o ócio. Conclui que a antropofagia é uma exaltação indiscriminada da preguiça, recaindo no nacionalismo indolente, oportunista e inconsequente. Vincula o pensamento de Oswald ao pior do Brasil, isto é, a identificação autocomplacente e laudatória com a inferioridade assumida.
Como é difícil conter essa cadeia associativa, voltemos ao começo. Oswald não diz que o humano é um ser inferior, mas que é a espécie que nasce desprotegida biologicamente, dotada de um “déficit essencial” que a faz carente de proteção e cuidado através dos anos. Um potrinho se ajeita nas pernas e sai andando pouco depois de nascer, um bebê não. O ser humano nasce como feto, e é esse atraso uma possível razão paradoxal do desenvolvimento, em nós, desse equipamento simbólico suplementar que é a linguagem. Como se pode ver em “A crise da filosofia messiânica”, Oswald não pretende ter inventado essa teoria, cujas fontes neodarwinistas ele mesmo aponta. Num artigo recente no “Estadão”, o biológo Fernando Reinach comentava a mesma tese, amplamente aceita hoje, da neotonia (dizia que deveríamos não apressar a alfabetização das crianças, como está na moda, porque o saber fica mais consolidado quando respeita esse traço constitutivo da espécie, sua demora). Toda a teoria do imaginário e da “etapa do espelho” em Lacan, por sua vez, está baseada na ideia do caráter originariamente prematuro do humano. Giorgio Agamben trata disso em “A ideia da infância”: a singularidade do desenvolvimento mental humano, seu avanço, tem a ver paradoxalmente com o fato de que seu ponto de partida é uma espécie de regressão biológica.
De maneira nada acadêmica, irregular, discutível, fulgurante e muitas vezes antecipatória, Oswald tratou sozinho, no Brasil, dessa e de outras questões que reconhecemos em pensadores que entraram em moda posteriormente (a revolução sexual reichiana, o sentimento órfico de Marcuse, a aldeia global de Macluhan, a descontrução de Derrida, a precedência da dívida sobre o dinheiro nas relações humanas, que se vê no livro recentíssimo de David Graeber). São inquietações estimulantes, nada óbvias, principalmente no contexto em que se deram, e desenvolvidas sem interlocução.
Facilmente ridicularizável pelas relações arriscadas, pela provocação, pelas elipses, pelo humor e pelo desejo utópico que a alimenta, essa filosofia de poeta não têm nada de primária e pede sempre um salto mortal na leitura. É quase natural que seu empuxe provocativo seja diluído por seguidores (que professam a ideia fácil de misturar tudo com tudo, de comer e “vomitar” influências) e pelos contrários, como Lobão, que fazem a mesma coisa, ao criticá-lo. Pois esse é um método frequentemente praticado por articulistas de opinião que se querem polêmicos: tornar primário o objeto de que se fala e no mesmo ato criticar o primarismo daquilo de que se está falando.
Lobão tem o mérito de comentar palavra por palavra do “Manifesto antropófago”, com uma sanha totalizante comparável nisso à da “Macumba antropófaga” de Zé Celso, que é o seu oposto. Acho que ele é sincero. Não falta amor nesse enfrentamento, a seu modo, embora falte humor e o senso dos registros múltiplos do pensamento. Suas perguntas ao texto vão em linha reta do literal mal assimilado para o judicativo, sem contemplação para o contexto, a figuração e o paradoxo.
Antropofagia oswaldiana não é canibalismo, não é nacionalismo, não se opõe à técnica, à crítica e ao rigor. “Bárbaro tecnizado” é roquenrou: aí Lobão acertou.
No final do livro, propõe um simpático abraço cósmico de amigo-irmão e convida o modernista para um papo de botequim (que, aliás, em nenhum momento deixou de ser). Nesse espelhamento, não seria mal tomar para si o conselho que dá a Oswald: “Agora só falta começar a pensar com mais clareza, menos rancor e menos presepada retórica de significado duvidoso”
Antropofagia oswaldiana não é canibalismo, não é nacionalismo. ‘Bárbaro tecnizado’ é roquenrou: aí Lobão acertou
Estive lendo Lobão, “Manifesto do nada na terra do nunca”. Em meio à saraivada de opiniões no autêntico estilo rebelde adolescente tardio, me interesso pelo ímpeto mais ambicioso do livro: desmitificar o pensamento de Oswald de Andrade, num tête-à-tête irreverente e afinal amistoso com o autor do “Manifesto antropófago”. Nas primeiras páginas, Lobão dá uma amostra do seu método crítico. Diz que Oswald sustenta, no seu texto chamado “O antropófago”, que o homem é “um subanimal entre todos os animais”, pois demora vinte anos para amadurecer, enquanto “um elefante já está pronto para a vida adulta aos dois anos de idade”. Lobão entende que Oswald está julgando “o grau de evolução da nossa espécie” como inferior a todas as outras, e tira como consequência disso a ideia de que, para Oswald, “o trabalho é fruto do homem inferior”, pois o desejo mais profundo do homem é o ócio. Conclui que a antropofagia é uma exaltação indiscriminada da preguiça, recaindo no nacionalismo indolente, oportunista e inconsequente. Vincula o pensamento de Oswald ao pior do Brasil, isto é, a identificação autocomplacente e laudatória com a inferioridade assumida.
Como é difícil conter essa cadeia associativa, voltemos ao começo. Oswald não diz que o humano é um ser inferior, mas que é a espécie que nasce desprotegida biologicamente, dotada de um “déficit essencial” que a faz carente de proteção e cuidado através dos anos. Um potrinho se ajeita nas pernas e sai andando pouco depois de nascer, um bebê não. O ser humano nasce como feto, e é esse atraso uma possível razão paradoxal do desenvolvimento, em nós, desse equipamento simbólico suplementar que é a linguagem. Como se pode ver em “A crise da filosofia messiânica”, Oswald não pretende ter inventado essa teoria, cujas fontes neodarwinistas ele mesmo aponta. Num artigo recente no “Estadão”, o biológo Fernando Reinach comentava a mesma tese, amplamente aceita hoje, da neotonia (dizia que deveríamos não apressar a alfabetização das crianças, como está na moda, porque o saber fica mais consolidado quando respeita esse traço constitutivo da espécie, sua demora). Toda a teoria do imaginário e da “etapa do espelho” em Lacan, por sua vez, está baseada na ideia do caráter originariamente prematuro do humano. Giorgio Agamben trata disso em “A ideia da infância”: a singularidade do desenvolvimento mental humano, seu avanço, tem a ver paradoxalmente com o fato de que seu ponto de partida é uma espécie de regressão biológica.
De maneira nada acadêmica, irregular, discutível, fulgurante e muitas vezes antecipatória, Oswald tratou sozinho, no Brasil, dessa e de outras questões que reconhecemos em pensadores que entraram em moda posteriormente (a revolução sexual reichiana, o sentimento órfico de Marcuse, a aldeia global de Macluhan, a descontrução de Derrida, a precedência da dívida sobre o dinheiro nas relações humanas, que se vê no livro recentíssimo de David Graeber). São inquietações estimulantes, nada óbvias, principalmente no contexto em que se deram, e desenvolvidas sem interlocução.
Facilmente ridicularizável pelas relações arriscadas, pela provocação, pelas elipses, pelo humor e pelo desejo utópico que a alimenta, essa filosofia de poeta não têm nada de primária e pede sempre um salto mortal na leitura. É quase natural que seu empuxe provocativo seja diluído por seguidores (que professam a ideia fácil de misturar tudo com tudo, de comer e “vomitar” influências) e pelos contrários, como Lobão, que fazem a mesma coisa, ao criticá-lo. Pois esse é um método frequentemente praticado por articulistas de opinião que se querem polêmicos: tornar primário o objeto de que se fala e no mesmo ato criticar o primarismo daquilo de que se está falando.
Lobão tem o mérito de comentar palavra por palavra do “Manifesto antropófago”, com uma sanha totalizante comparável nisso à da “Macumba antropófaga” de Zé Celso, que é o seu oposto. Acho que ele é sincero. Não falta amor nesse enfrentamento, a seu modo, embora falte humor e o senso dos registros múltiplos do pensamento. Suas perguntas ao texto vão em linha reta do literal mal assimilado para o judicativo, sem contemplação para o contexto, a figuração e o paradoxo.
Antropofagia oswaldiana não é canibalismo, não é nacionalismo, não se opõe à técnica, à crítica e ao rigor. “Bárbaro tecnizado” é roquenrou: aí Lobão acertou.
No final do livro, propõe um simpático abraço cósmico de amigo-irmão e convida o modernista para um papo de botequim (que, aliás, em nenhum momento deixou de ser). Nesse espelhamento, não seria mal tomar para si o conselho que dá a Oswald: “Agora só falta começar a pensar com mais clareza, menos rancor e menos presepada retórica de significado duvidoso”
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