São eles que catalisam, de maneira difusa, toda indignação pátria que não é resolvida através do lobby
Da desocupação da Aldeia Maracanã aos atuais conflitos fundiários, passando pela resistência à construção da usina de Belo Monte, os índios brasileiros, certos ou errados, vêm se tornando os protagonistas dos movimentos de protesto no Brasil. Pouco se ouve mais falar em MST. Passeatas não existem, com exceção dos movimentos LGBT, das marchas da maconha e das mobilizações evangélicas em defesa da intolerância.
Em período de campanhas eleitorais, militantes, só os que são pagos para encher comícios e os miseráveis que recebem para segurar cartazes. De forma mais constante, é o conjunto de quase 900 mil índios brasileiros, em aldeias ou nas cidades, destribalizados, a ponta de lança da fibra nacional. São eles que catalisam, de maneira difusa, toda indignação pátria que não é resolvida através do lobby, das articulações de gabinete e das negociatas na calada da noite.
Não à toa o contingente que aderiu à resistência dos índios do Maracanã ser composto por um amálgama tão variado quanto reduzido, no qual os que estavam de fato interessados na permanência do grupo no Museu eram exceções: a maior parte era composta por almas inflamadas por outras causas, cívicas, existenciais ou desconhecidas.
Antigamente, o índio cometia falsidade intelectual para ser branco. Hoje começa a haver, incipiente, uma inversão. É o caso do cidadão amazonense que se disfarçou de índio e cuja certidão ilegítima foi flagrada pelas autoridades. Há algo, hoje, em ser índio, que atrai os que buscam uma válvula de escape para alguma intuição ética à qual o espírito silvícola seria capaz de dar forma e expressar.
Esta aderência, contudo, embora visível, soma, em essência, meia dúzia de entusiastas anônimos dispersos, alguns etnólogos e cientistas sociais, sobras de massa politicamente constituída, românticos brancaleônicos e ambientalistas pingados. De resto, como já disse aqui outras vezes, brasileiro odeia índio, seja o branco, o pardo, o negro, o migrante, enfim, o brasileiro urbano e o brasileiro rural não-indígena, analfabeto ou com grau de doutor, político, empresário, jornalista, mendigo, normalmente reage, à simples menção da questão indígena, com esgares de riso amargo e escarros de desprezo.
Já há até um detestável e ignominioso movimento em círculos cariocas e além para que a abertura das Olimpíadas de 2016 não tenha show indígena, coisa cafona e antiquada, a ser estripada da memória nacional.
De maneira geral, e isto é vergonhoso, o índio é tido por um tipo de marginal que não merece a pouca sorte que tem. Seriam todos integrantes de uma mesma massa de aproveitadores hipócritas alcoólatras e mercenários instalados em terras cujas riquezas ora não exploram, ora usam a seu bel-prazer. Ignora-se, ou desrespeita-se, por inteiro, a grande diversidade de heranças, e também os diferentes processos históricos pelos quais cada grupo passou, e continua a passar, do Descobrimento aos dias de hoje.
Por exemplo, há aldeias onde o álcool é proibido e nas quais os ritos dos pajés não permitem o uso de instrumentos musicais “externos". Em outras, a televisão é proibida mas o álcool e o violão são permitidos. Há aldeias nas quais se vive um grande renascimento da vertente espiritual, com formação de novos pajés, mas nas quais a confecção de artesanato perdeu-se. Há aldeias onde impera a lógica econômica e se destrói a floresta, ao passo que, em outras, a preservação das florestas e dos rios são questões de honra, sendo que a natureza é vista como parte integrante da cosmologia na qual estão incluídas todas as atividades .
Há aldeias de beira de estrada 100% aculturadas. Há aldeias de beira de estrada nas quais narrativas milenares são reconstruídas. Há índios que vivem em ocas coletivas. Há índios que vivem sob telhas abafadas. Há aldeias saneadas nas quais a cultura floresce e se reaprendem os idiomas originais e o português ao mesmo tempo. Há grupos que vendem a biodiversidade de forma responsável. Outros, colaboram com o tráfico de patrimônio ambiental. Há índios que aceitam Jesus de bom grado, incluindo o Deus branco no rol de suas entidades de amor. Há índios que preferem ficar conectados a seus próprios entes. Há índios. E índios.
Índios são gente. Mas são índios. Nem todos iguais. Mas todos, em menor ou maior medida, resistem a uma corrente que os arrasta rio acima e abaixo há 500 anos, deixando nas margens rastros de sangue e de abuso, uma torrente inquisitorial da qual, hoje, ainda se sentem os efeitos.
São nações em pleno paradoxo, inimputáveis e torturadas, contempladas e expulsas, mas, grosso modo, intelectualmente desprezadas na maior parte dos casos até por aqueles cuja retórica os favorece. Por isso, no Brasil de hoje, só o índio protesta de fato.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/so-indio-protesta-8621972#ixzz2XekdZx8H
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