Teremos que nos acostumar com a dimensão simultaneísta, nada linear nem unânime, dos acontecimentos contemporâneos
Dada a urgência e a emergência dos fatos nas duas últimas semanas, todos os que escrevem com dois dias de antecedência, como é o caso desta coluna, tiveram que se precaver frente às surpresas dadas pelas voltas, pelas revoltas e pelas revoltas e meias que se mostraram capazes de acontecer a todo momento. Independente disso, tudo indica que vivemos agora um momento de rescaldo. Quero confessar que, antes de escrevê-la, corri ao dicionário, precavido e inquieto, em busca da palavra “rescaldo”. Como se consultasse, mais do que o Houaiss, um oráculo. Lá estava ela, como no poema de Drummond, com suas “mil faces secretas sob a face neutra”, me perguntando, sem interesse pela resposta pobre ou terrível que eu pudesse lhe dar: “Trouxeste a chave?”.
Em última análise, rescaldo é o saldo, o balanço de um processo, a avaliação dos ganhos e das perdas. Seria muito pouco se fosse só isso, que não descreve o ritmo dos acontecimentos, estes mesmos nada acabados, com o que estamos muito longe de uma “última análise” que ninguém está na posição de fazer. Melhor é o primeiro sentido do dicionário: “calor refletido de uma fornalha ou de um incêndio”. Ou ainda: “cinza que contém brasa”. Os reflexos do calor estão aí, sim, chamando a refleti-lo. Ou refletindo a chama? Me perco nesse labirinto: quem mandou entrar no reino das palavras? Mas continuo: rescaldo é tanto as “cinzas lançadas por um vulcão” quanto o “ato de se deitar água nas cinzas de um incêndio”. Que, no caso, não acabou.
Em poucas horas a política brasileira oficial fez coisas que dizia ser impossível fazer, que fazia ser impossível acontecer ou que simplesmente não aconteciam, sem dizer. As tarifas do transporte coletivo baixaram ao ponto de onde quiseram subir, CPIs se abriram em São Paulo e no Rio, Alckmin cancelou o indefectível reajuste dos pedágios estaduais e Dilma anunciou 50 bilhões para o transporte público, além de abrir a discussão de um plebiscito sobre a necessária reforma política que jamais subiu ao plano das prioridades. O Supremo Tribunal Federal determinou a prisão exemplar de um deputado, fato inédito na história da nossa democracia, a corrupção vira crime hediondo como num bem-vindo passe de mágica, desaparece o voto secreto em processos de cassação de mandato (há seis anos no limbo), é sepultada a PEC 37 que estava na iminência da aprovação, por 430 votos contra nove e duas abstenções (alguns desses contrários alegaram, ainda assim, se não me engano, que apertaram a tecla errada), e os royalties do petróleo para a educação e a saúde foram aprovados.
A repressão desvairada dos primeiros protestos recuou de alguma maneira para compromissos de civilidade, e o Congresso foi visto, como nunca acontecera, trabalhando em dia de jogo da seleção brasileira. Tudo isso está elencado no blog de Mário Magalhães, que fez o rápido balanço, e nesse sentido o rescaldo, das várias portas políticas que se abriram sob a pressão das manifestações. O ritmo serelepe das providências, em contraste irônico com a sua rematada imobilidade, denunciam tanto a força do vulcão quanto o desejo de deitar água o mais rapidamente possível nas cinzas do incêndio. Algumas das primeiras falas de parlamentares, depois de algum tempo escondidos, e entre elas a de Renan Calheiros, afirmaram, como se nada tivesse acontecido, que o Congresso está plenamente conectado com a voz das ruas.
Mas eu acredito que as máscaras da perene acomodação sem mudança não serão tão fáceis de se sustentar, depois desses acontecimentos e durante os novos tempos, como acusam as próprias medidas que se precipitaram. Algo aconteceu e algo está acontecendo. Jornalistas em meio aos protestos (Antonio Prata, Marcelo Coelho, Arnaldo Bloch) identificaram com muita verve a barafunda confusa e bizarra das demandas concomitantes, as mais genéricas e as mais específicas, sensatas ou absurdas, contidas neles. Teremos que nos acostumar com a dimensão simultaneísta, nada linear nem unânime, dos acontecimentos contemporâneos. Mas isso não quer dizer que eles não tenham linhas de sentido que se perdem na observação de muito perto. Haja cabeça para o total.
A propósito, Leonardo Pereira, historiador do futebol e da Revolta da Vacina, convida a pensar como tema da política, e não somente de polícia, os chamados baderneiros pobres que atacam os símbolos de um Estado ineficaz, os ônibus de um transporte precário em que trabalhadores perdem horas e horas diárias, lojas de automóveis, estádios repaginados para consumidores abonados. Coibir esses atos exige também saber lê-los para além do estigma da arruaça.
Rescaldo, enfim, é o aparelho para conservar quentes as comidas servidas à mesa. E a camada de estrume que se coloca em torno de uma caixa com plantas para aquecer a terra e fermentá-la.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/rescaldo-8847298#ixzz2XhP7GRLw
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