O grupo que marcou o Brasil nas últimas semanas é movido por intuições diversas e desligado de qualquer estrutura formal
Disse o ministro-chefe interino da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e presidente do Ipea (quantas qualificações!), Marcelo Neri, que a massa que se manifestou nas últimas semanas não é a verdadeira massa. A teoria é mais ou menos a seguinte: como a renda no topo da pirâmide subiu menos do que na base, os mais ricos resolveram fazer biquinho. Ora, seu Neri, se não foram os mais pobres, tampouco foram os filhos de Eike que saíram mascarados, munidos de cartazes e de vinagre. Quem estava nas ruas era a famosa classe média mesmo, não a nova, mas a velha nova, que, embora jovem e cibernética, é a que paga, e sempre pagou, a conta.
No caso, a conta das benesses que a Era Lula, em seu pacto com a sociedade, distribuiu aos ricos e a renda programática que distribuiu aos pobres. Malfadada, eterno recheio ensanduichado entre forças opostas — ricos/pobres, esquerda/direita, governo/povão — a classe média de agora meteu-se no vácuo formado pela ausência de uma crise.
Apesar de ter pago a conta tanto dos avanços quanto dos retrocessos (o retrocesso político, por exemplo, a partir do lema “todos pusemos a mão na lama”), nada de especialmente bom choveu na sua horta, e a pouca vergonha (eis uma expressão bem classe média) não só imperou, como esculachou.
Se é verdade que quem acorda às cinco para pegar três conduções até o canteiro de obras não foi às passeatas (foi para casa, preparar a marmita), é verdade também que ninguém viu este povo, tampouco, opor-se às reivindicações múltiplas de quem foi às ruas: afinal, na pauta estava, inclusive, o preço das suas passagens nas referidas três conduções até o canteiro de obras. Vai reclamar?
Se é verdade que a massa manifesta parece-se menos com a turma que ia à Geral do Maraca e mais com a turma meio “ariana” que está indo aos estádios na Copa das Confederações, é também verdade que, ao menos dessa vez, o povo que não foi sentiu-se representado pelo povo que foi: nos pés-sujos ecoou, entre uma cerveja e outra, a pauta difusa, alimentada pela multiplicação fragmentada de temas nas redes sociais. A sociedade tribalista, a “classe mídia", saiu, enfim, para respirar um pouco.
É uma classe diferente daquela que formou na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964: ali, tratava-se de uma classe média manipulada pelo alarmismo anticomunista que reagia às propostas de João Goulart. Diferente também daquela que pediu Eleições Diretas, politizada e afinada com o processo de redemocratização que partiu das entranhas podres da ditadura militar. A classe média que, nas últimas semanas, marcou o Brasil, tirou o sono e encheu de olheiras todos os prefeitos, governadores, parlamentares e juízes do país, disseminou medo nas consciências mais pesadas e fez racharem os telhados de vidro, é uma classe média desligada de qualquer estrutura formal ou de pressão institucionalizada, movida por intuições as mais diversas.
O resultado imediato dessa grande rodada de expressão cívica, à primeira vista, soa numa espécie de escala miraculosa: aumentos de passagem revogados, a PEC-37 defenestrada, o crime de corrupção tornado hediondo. Numa jogada de mestre, Dilma Rousseff trouxe para si, no dia seguinte a um pronunciamento morno, o centro da pauta ao propor um plebiscito que ela mesma sabia ser inviável, mas que mobilizou todos os poderes em torno da urgência de dar respostas.
Há, contudo, o risco de que tais providências percam-se na espuma podre que emana das rotinas de nossas casas legislativas, da burocracia de nossas repartições, da morosidade da Justiça, e de todas as heranças do clientelismo atávico. Afinal, num país em que, a despeito das leis, tudo pode, por que se há de crer que, alteradas subitamente, por votação simbólica, rito sumário ou factoide plebiscitário, serão elas respeitadas agora?
Muda-se uma lei aqui, derruba-se um aumento ali (com ressalvas e cortes de investimentos), chuta-se para escanteio uma PEC acolá, e, arrefecidos os ânimos, pode-se voltar a roubar sossegadamente.
Incrível mesmo, no meio de toda a convulsão, é constatar a resistência de Feliciano: a Cura Gay ainda não caiu, a internação compulsória de usuários de maconha mediada por instituições religiosas com criação de cadastros foi aprovada na calada da noite, e a discussão sobre o aborto continua morta.
Outro detalhe que vale a pena observar é o exemplo que deram a Rocinha e o Vidigal, na manifestação carioca que mais se aproximou da base da pirâmide à qual se refere o senhor Neri. Foi também das poucas passeatas nas quais os tais vândalos (os vândalos mesmo e os violentos ideológicos de todas as cores) não apitaram no fim.
E, por fim (e por falar em apito), é curioso lembrar que tudo começou em meio ao conflito entre índios e latifundiários, que se apagou do debate tão logo saíram os mascarados, embora, nas ruas, todos fossem índios. O cacique, ninguém sabe, ninguém viu.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/a-classe-midia-8849369#ixzz2XhO4VCS3
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