Rio - Foi há mais de um século, mas dá para imaginar a expressão de espanto do editor da Lippincott’s Monthly Magazine ao receber a primeira versão dos originais de “O retrato de Dorian Gray”. Nem mesmo a liberal revista americana, que em 1890 havia concordado em lançar o romance de Oscar Wilde, estava pronta para o homoerotismo explícito da obra. Tentando abrandar referências a um tema tabu para a época, foram cortadas nada menos do que 500 palavras do texto original. Ainda assim, a história escandalizou a Inglaterra vitoriana — a ponto de o próprio autor se autocensurar na publicação em forma de livro de 1891, excluindo em sua revisão diálogos e descrições mais gráficas.
Esquecido nas gavetas das academias, o “proibidão” de Wilde saiu do limbo apenas em 2011, pelas mãos do pesquisador inglês Nicholas Frankel. E só agora, 123 anos após ter sido retalhado em nome dos bons costumes, ganha seu primeiro lançamento em português, pela Biblioteca Azul (selo da Editora Globo). Trata-se do “Dorian Gray” inicialmente concebido por Wilde — e muito provavelmente aquele que o escritor inglês gostaria que conhecêssemos hoje, se a sociedade de seu tempo tivesse permitido.
— Podemos apenas especular, mas tenho a impressão de que Wilde preferiria que lêssemos a versão não censurada — sugere Frankel, que também organiza a edição. — Ao autorizar a versão censurada de 1891, ele sabia que tinha comprometido sua visão original. Acredito firmemente que Wilde fez esses cortes com relutância, embora, do ponto de vista legal, a sua sabedoria tornou-se evidente, quatro anos mais tarde, quando foi acusado em tribunal de purgar o romance para obscurecer suas intenções originais.
Mais ousada e explícita em seu conteúdo sexual, a nova edição deixa claro que os sentimentos entre Dorian e Lorde Henry iam muito além da amizade e da admiração intelectual. Como Frankel mostra na apresentação do livro, há diversas evidências de que os três personagens principais (Dorian, Henry e Hallward) praticam atos de “flagrante indecência”. Embora a natureza dos relacionamentos nunca seja revelada por inteiro, Hallward confessa a Dorian: “É bem verdade que o idolatrei com um sentimento afetivo muito maior do que qualquer homem deveria devotar a um amigo”. Não menos escandalosos são os ataques de Wilde à instituição do casamento, disparando frases como “Há certos temperamentos que o matrimônio torna mais complexos” e “O único encanto do casamento é que as duas partes são obrigadas a viver um embuste”.
A eliminação das passagens comprometedoras não foi suficiente para evitar a ira da crítica inglesa (“Wilde escreve coisas que não deveriam ser escritas”, afirmou um resenhista). Ao se defender dos ataques, o autor insistiu que seu livro deveria ser julgado não por questões morais, mas por seu valor estético. Neste sentido, seria a versão original de “Dorian Gray” literariamente melhor do que a censurada?
— Muitos leitores deverão concordar que a versão sem censura, embora menos extensa do que a publicada em 1891, é esteticamente superior — avalia Frankel. — É mais rápida, unificada e intransigente. Muitas das mudanças de Wilde não foram feitas necessariamente para tornar o romance melhor.
Pela popularidade atual de “O retrato de Dorian Gray”, é surpreendente que esse tesouro editorial tenha levado tanto tempo para ser publicado. Segundo Frankel, o longo purgatório se explica pela estigmatização sofrida por Wilde até os anos 1990. Embora estudiosos da literatura queer tenham se esforçado para redimi-lo como grande autor, a reavaliação demorou a chegar. Também pesa o fato de o próprio Wilde ter revisado a segunda edição do livro, não só aceitando como aumentando os cortes da primeira publicação. Contudo, as circunstâncias em que se realizaram os expurgos, de ordem legal muito mais do que estética, nunca haviam sido devidamente analisadas.
— Privilegiou-se a segunda versão, que passou pelo crivo final do autor, mas houve uma falta de interesse pelas circunstâncias que a moldaram — esclarece Frankel. — Fui o primeiro pesquisador a examinar a correspondência da primeira editora do livro, e consequentemente o primeiro a descrever o clima de pânico e paranoia que a fez eliminar parte do material.
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