domingo, 30 de junho de 2013

Crônica do Dia - A embocadura do rio

Sempre me fascinou o tempo, rio que incessantemente  nos carrega, nós distraídos acumulamos  bens supérfluos,  sedentos de prazeres, carregando culpas inúteis,  tramando laços bons ou destrutivos, buscando muito mais que nossa dignidade. Quem não quer um cargo melhor,  maior salário,  mais importância? Quem não há de preferir harmonia, simplicidade, crescimento pessoal, amores bons?





    O tempo na minha infância era feminino, em alemão  "Die Zeit". Então sem ninguém ter me dito isso, para mim era uma velha bruxa instalada em todos os relógios daquele que davam os quartos de hora, meia hora, e hora inteira, cujo o tique-taque, enchia a casa  nas madrugadas misteriosas.. A velha tricotava o tempo, mantas intermináveis, suas agulhas de metal tiquetaqueando.  Minutos, horas, dias. Mas tarde entendi que o tempo se estendia em anos, décadas ,milênios, e comecei a sentir um pouco  mais  o seu poder. E torcia no meu coração e criança: não pare, não pare, não pare o mundo. Um dia percebi também que eu podia parar e desde então eu o respeitei muito mais, o Tempo, velho  bruxo, com o seu tear desmedido, tecelão, ou rio com suas correntezas e redemoinhos, e enseadas mansas- não importa: ele tudo carrega, transforma,  e faz com que,  como disse Clarice Lispector", de repente  tinham se passado  vinte anos". Ou quarenta: espantoso poder dizer "isso foi há quarenta anos" e parecer tão natural.
      Por outro lado esse mesmo gnomo tece laços entre as pessoas: o tempo dos casais que acumularam rancores e mágoas e aprendem  a se odiar; o  tempo dos casais que elaboram um amor terno e respeitosos- aqueles casais de dois extremos, de uma sala se entendem só pelo olhar;  o tempo que transforma filhos pequenos em homens e mulheres, com seu destino, mas mesmo assim, podem se manter ligados a nós  pelos fios dos cuidados e do  afeto.; ou se afastam e não nos lembram quando esses fios são  cruelmente cortados e a gente pouco pode fazer.
      O tempo que tem uma adversária  poderosa; a memória, em que tudo estar, enquanto estiver  acesa em nós. Os belos momentos, os prantos,  os abraços, as paisagens, as frustações, as grandes perdas, e aqueles que perdemos continuam em nós, com o rosto e a idade que tinham quando partiu. E essa dama  singular, a memória, nos ajuda em parte a suportar as despedidas: pois ainda sou  a menina  assombrada pelas curiosidades e   inquietações de décadas atrás, minha mãe se enfeita para uma festa , diante de seu toucador  com  espelho em forma de maia- lua, brotando do chão, enquanto, eu maravilhada,  encolhida  na cama de casal, observava." Mãe, você vai ser a mais bonita da festa.  Mãe, você é a mãe, mais bonita da escola. Mãe, quando  eu crescer eu quero ser como você. E mesmo quando o tempo e a doença , consumirem sua energia, alegria, e beleza, e lhe  roubaram a memória, me dou conta  de que ela, como todas as pessoas, continuam em todos os espelhos do mundo. basta saber olhar. Basta saber lembrar.  Alguém me disse, ter visto aquele toucador, com aquele espelho , em alguma  casa:  que sentimento me invadiu.
      O que ficará  de nós , nos espelhos atemporais ,  quando desaguarem as apressadas torrentes do rio do tempo e terminar o trabalho,   desse   gnomo  de agulhas delirantes tecendo nossas vidas? Nunca sabemos. Seremos lançados como garrafas com mensagens: nossas vidas, nossos dias ,  e obras, e dores, e realizações e decepções, e tudo isso que estamos, a cada minuto, a cada hora, dia, talvez, décadas, construindo sem nos darmos  conta desse  nosso incessante trabalho. Seremos lançados nisso,  cujo verdadeiro nome é Enigma. Eu chamo  Oceano. Quem sabe , Esplendor.


      Lya  Luft


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