O GLOBO - 13/07/2013
Será o escritor um intelectual? Em que medida a pesquisa meticulosa,o empenho crítico, o planejamento comandam a escrita literária? Não tenho dúvidas de que estes são elementos de arremate, através dos quais as palavras tomam, enfim, uma forma. Algo, porém, os precede. E é neste ponto
anterior, em que outros fatores trabalham
secretamente, que uma escrita (uma autoria) nasce. Em uma crônica sobre a artista plástica
Maria Bonomi, publicada no “Jornal do Brasil”,
enfrentando o argumento de que sua escrita tem uma forte dívida com as imagens, Clarice
Lispector escreve: “Um dos argumentos é que o que eu escrevo é muito visual. Mas se é, é de
um modo inconsciente. No momento em que eu conscientemente tivesse que ter como meta
a visão, atrapalhar-me-ia toda”. A escrita,
Clarice nos diz, surge antes da palavra. Ela se faz
em um momento anterior ao ato deliberado, ou planejado. Ao ato intelectual. Surge antes
do próprio escritor — que se prepara para
escrever muito antes de decidir que fará isso.
Leio o trecho da crônica de Clarice em
“Clarice Lispector/Pinturas”, de Carlos Mendes de Sousa (Rocco). Clarice era apaixonada por
“City in Bloom”, uma xilogravura sobre papel que
Bonomi realizou em 1958. Um trabalho severo e obscuro, em que a cidade se transfigura em
duas flores negras. Sempre teve as artes plásticas
como uma referência, mas este laço só a
arrastou quando, no ano de 1975 — dois anos antes
de morrer — começou obsessivamente a pintar.
Integrando a visão dolorosa que Bonomi teve da cidade, as telas de Clarice são, quase sempre,
incômodas, tensas e despertam, mais que prazer estético, mal-estar. Em um mundo, o da
decoração, no qual a pintura é escolhida para
combinar com o novo conjunto de estofados, elas se
tornam
desinteressantes, ou pelo menos inúteis.
Nelas se guardam, porém, e embora
realizadas em um momento no qual a obra literária já estava praticamente pronta, alguns dos
antecedentes mais preciosos da ficção de Clarice
Lispector. A arte é indiferente ao tempo: o antes vem depois. Só depois de se transformarem em
escrita, esses fatores caóticos — como no borbulhar de um parto — podem, enfim, entrar em cena.
As telas levam, além disso, títulos
desagradáveis: “Cérebro adormecido”, “Medo”, “Raiva e
reindifição”, “Caos, metamorfose, sem sentido”, “Eu te pergunto por quê?”. São apenas dezessete
telas, depositadas nos arquivos da Fundação Casa
de Rui Barbosa, no Rio.
Em 1975, Clarice parecia dominada pela
ideia do medo. Foi em 1975 — se me permitem
relembrar uma história pessoal, na qual não posso
deixar de pensar — que, aos 24 anos de idade, lhe
enviei um pequeno (e precário) conto, em busca da avaliação do “autor consagrado”. Foi nesse
mesmo ano que ouvi, por telefone, e atravancada de
erres, a resposta que até hoje ecoa em meu interior:
“Você é um homem muito medrrroso e com medo
ninguém escrrreve. Boa tarrrde” — e desligou.
Poucas semanas depois, Clarice viajou a Bogotá para
participar de um Congresso de Bruxaria. Preparou um texto para ler, “Literatura e magia”, mas na
hora preferiu que fosse lido outro, “O ovo e a
galinha”, um dos mais enigmáticos contos que
escreveu.
Pois “Literatura e magia” tem como base
uma
reflexão a respeito de um dos quadros mais
terríveis que ela pintou, “Medo”, um óleo sobre
madeira datado de 16 de maio de 1975. Carlos
Mendes de Sousa destaca, em seu livro, um trecho crucial do discurso desprezado, no qual
Clarice descreve sua pintura. “A tela era pintada de
preto, quase no centro havia uma terrível mancha amarelo-escuro, dentro dessa mancha algo
vermelho, preto e amarelo vivo”. Conclui sua
apreciação
com a veemência que sempre a caracterizou:
“Olhar esse quadro me faz mal”.
“Medo” reaparece na página 148 do livro de
Sousa. Eu a vi, pela primeira vez, em uma das
visitas que fiz ao Museu de Literatura Brasileira, da
Casa de Rui. Não pude tirar os olhos do título, “Medo”,
e da data, “16 de maio de 1975”, assinada no
canto inferior direito do quadro. Eram os anos 1990 e
eu trabalhava na pesquisa de “O poeta da paixão”,
minha biografia do poeta Vinicius de Moraes,
cujos inéditos se acham arquivados no mesmo
museu. Sem nenhum pudor, e com a necessária dose
de desvario que meus vinte anos permitiriam,
imediatamente pensei: “Clarice pintou meu conto”. Mas a verdade talvez fosse ainda mais incômoda,
e pensei logo em seguida: “Clarice pintou
meu medo”. Não era um quadro, era um espelho.
A que ponto chega a vaidade! Resta
amparar-me na frase de Mário de Andrade: “Todo escritor
escreve por vaidade. Se mostra é por vaidade, se não mostra é por vaidade também”. Ela serve
de epígrafe ao pequeno conto que enviei a
Clarice.
Vejam o que me aconteceu: inspirado pela
leitura do livro de Sousa, me pus a falar da
pintura de Clarice — e acabei falando de mim. Vejam
como, também na leitura, são estranhos e tortos
os caminhos que percorremos. Há coisas que
grudam, nos pesam e nos empurram: o medo, por exemplo. Clarice sabia o que me dizia e a
verdade é que, pensando ou não em mim, isso está
em seu quadro. Em 1977, fui a seu velório, no
Cemitério Israelita do Caju. O caixão, seguindo a
tradição religiosa, estava lacrado. Senti medo.
Olhando aquela tampa negra, fui tomado por uma grande vontade de fugir, sentimento que só a
palavra medo pode definir. Mesmo assim, fiquei até o fim e assisti ao sepultamento.
Hoje, o mesmo sentimento me retorna diante
da tela que Sousa reproduz em seu vigoroso
livro. Como ele mesmo nos lembra, a melhor
crítica da pintura de Clarice é uma de suas
personagens, Angela Pralini, protagonista do romance póstumo “Um sopro de vida”. Fala-nos
Angela desse momento anterior — anterior a si
mesma, anterior ao próprio artista — em que a arte se
esboça. “De súbito então vem do subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga
nas nervuras, acompanhando-as um pouco — mas mantendo a liberdade”. Neste ponto anterior
(antes da própria Angela, antes mesmo de Clarice) não pode haver deliberação, só entrega. Sem
liberdade, em consequência, nada acontece. Ali nasce a pintura, Ali nasce a literatura.
Alguma coisa, enfim, se faz. Quem faz? Qualquer
resposta que se possa dar será, sempre, posterior
ao nascimento e à força que o gerou.
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