quinta-feira, 18 de julho de 2013

Crônica do Dia - Antes de Clarice - José Castello

O GLOBO - 13/07/2013

Será o escritor um intelectual? Em que medida a pesquisa meticulosa,o empenho crítico, o planejamento comandam a escrita literária? Não tenho dúvidas de que estes são elementos de arremate, através dos quais as palavras tomam, enfim, uma forma. Algo, porém, os precede. E é neste ponto anterior, em que outros fatores trabalham secretamente, que uma escrita (uma autoria) nasce. Em uma crônica sobre a artista plástica Maria Bonomi, publicada no “Jornal do Brasil”, enfrentando o argumento de que sua escrita tem uma forte dívida com as imagens, Clarice Lispector escreve: “Um dos argumentos é que o  que eu escrevo é muito visual. Mas se é, é de um modo inconsciente. No momento em que eu conscientemente tivesse que ter como meta a visão, atrapalhar-me-ia toda”. A escrita, Clarice nos diz, surge antes da palavra. Ela se faz em um momento anterior ao ato deliberado, ou planejado. Ao ato intelectual. Surge antes do próprio escritor — que se prepara para escrever muito antes de decidir que fará isso.
 
 
Leio o trecho da crônica de Clarice em “Clarice Lispector/Pinturas”, de Carlos Mendes de Sousa (Rocco). Clarice era apaixonada por “City in Bloom”, uma xilogravura sobre papel que Bonomi realizou em 1958. Um trabalho severo e obscuro, em que a cidade se transfigura em duas flores negras. Sempre teve as artes plásticas como uma referência, mas este laço só a arrastou quando, no ano de 1975 — dois anos antes de morrer — começou obsessivamente a pintar. Integrando a visão dolorosa que Bonomi teve da cidade, as telas de Clarice são, quase sempre, incômodas, tensas e despertam, mais que prazer estético, mal-estar. Em um mundo, o da decoração, no qual a pintura é escolhida para combinar com o novo conjunto de estofados, elas se tornam
desinteressantes, ou pelo menos inúteis.

 
Nelas se guardam, porém, e embora realizadas em um momento no qual a obra literária já estava praticamente pronta, alguns dos antecedentes mais preciosos da ficção de Clarice Lispector. A arte é indiferente ao tempo: o antes vem depois. Só depois de se transformarem em escrita, esses fatores caóticos — como no borbulhar de um parto — podem, enfim, entrar em cena. As  telas levam, além disso, títulos desagradáveis: “Cérebro adormecido”, “Medo”, “Raiva e reindifição”, “Caos, metamorfose, sem sentido”, “Eu te  pergunto por quê?”. São apenas dezessete telas, depositadas nos arquivos da Fundação Casa de  Rui Barbosa, no Rio.
 
Em 1975, Clarice parecia dominada pela ideia do medo. Foi em 1975 — se me permitem relembrar uma história pessoal, na qual não posso deixar de pensar — que, aos 24 anos de idade, lhe enviei um pequeno (e precário) conto, em busca da avaliação do “autor consagrado”. Foi nesse mesmo ano que ouvi, por telefone, e atravancada de erres, a resposta que até hoje ecoa em meu interior: “Você é um homem muito medrrroso e com medo ninguém escrrreve. Boa tarrrde” — e desligou. Poucas semanas depois, Clarice viajou a Bogotá para participar de um Congresso de Bruxaria. Preparou um texto para ler, “Literatura e magia”, mas na hora preferiu que fosse lido outro, “O ovo e a galinha”, um dos mais enigmáticos contos que escreveu.
 
 
 
Pois “Literatura e magia” tem como base uma
reflexão a respeito de um dos quadros mais terríveis que ela pintou, “Medo”, um óleo sobre madeira datado de 16 de maio de 1975. Carlos Mendes de Sousa destaca, em seu livro, um trecho crucial do discurso desprezado, no qual Clarice descreve sua pintura. “A tela era pintada de preto, quase no centro havia uma terrível mancha amarelo-escuro, dentro dessa mancha algo vermelho, preto e amarelo vivo”. Conclui sua apreciação
com a veemência que sempre a caracterizou:
“Olhar esse quadro me faz mal”.
“Medo” reaparece na página 148 do livro de Sousa. Eu a vi, pela primeira vez, em uma das visitas que fiz ao Museu de Literatura Brasileira, da Casa de Rui. Não pude tirar os olhos do título, “Medo”, e da data, “16 de maio de 1975”, assinada no canto inferior direito do quadro. Eram os anos 1990 e eu trabalhava na pesquisa de “O poeta da paixão”, minha biografia do poeta Vinicius de Moraes, cujos inéditos se acham arquivados no mesmo museu. Sem nenhum pudor, e com a necessária dose de desvario que meus vinte anos permitiriam, imediatamente pensei: “Clarice pintou meu conto”. Mas a verdade talvez fosse ainda mais incômoda, e pensei logo em seguida: “Clarice pintou meu medo”. Não era um quadro, era um espelho. A que ponto chega a vaidade! Resta amparar-me na frase de Mário de Andrade: “Todo escritor escreve por vaidade. Se mostra é por vaidade, se não mostra é por vaidade também”. Ela serve de epígrafe ao pequeno conto que enviei a Clarice.
Vejam o que me aconteceu: inspirado pela leitura do livro de Sousa, me pus a falar da pintura de Clarice — e acabei falando de mim. Vejam como, também na leitura, são estranhos e tortos os caminhos que percorremos. Há coisas que grudam, nos pesam e nos empurram: o medo,  por exemplo. Clarice sabia o que me dizia e a verdade é que, pensando ou não em mim, isso está em seu quadro. Em 1977, fui a seu velório, no Cemitério Israelita do Caju. O caixão, seguindo a tradição religiosa, estava lacrado. Senti medo. Olhando aquela tampa negra, fui tomado por uma grande vontade de fugir, sentimento que só a palavra medo pode definir. Mesmo assim, fiquei até o fim e assisti ao sepultamento.
Hoje, o mesmo sentimento me retorna diante
da tela que Sousa reproduz em seu vigoroso livro. Como ele mesmo nos lembra, a melhor crítica da pintura de Clarice é uma de suas personagens, Angela Pralini, protagonista do romance póstumo “Um sopro de vida”. Fala-nos Angela desse momento anterior — anterior a si mesma, anterior ao próprio artista — em que a arte se esboça. “De súbito então vem do subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas nervuras, acompanhando-as um pouco — mas mantendo a liberdade”. Neste ponto anterior (antes da própria Angela, antes mesmo de Clarice) não pode haver deliberação, só entrega. Sem liberdade, em consequência, nada acontece. Ali nasce a pintura, Ali nasce a literatura. Alguma coisa, enfim, se faz. Quem faz? Qualquer resposta que se possa dar será, sempre, posterior ao nascimento e à força que o gerou.

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