Um valioso conjunto de documentos resguardados pela Unesco e agora em exposição no Rio de Janeiro ajuda a derrubar mitos, recontando episódios que fizeram a história do Brasil
Quem tiver fôlego para se debruçar sobre os onze volumes dos Autos da Devassa, como é chamado o processo que condenou inconfidentes mineiros em 1792, vai deparar com uma imagem de José da Silva Xavier, o Tiradentes, bem diferente da que se aprendeu na escola. Nos livros de história, Tiradentes é descrito como um simples alferes (patente militar equivalente hoje à de segundo-tenente). O rol de bens que consta nos autos, no entanto, é o de grande proprietário de terras que emprestava dinheiro a juros e tinha autorização para exercer a mineração em diversos lotes de terra em Minas Gerais – evidencia inconteste de sua proximidade com o poder. Da lista consta uma fazenda no interior de Minas, de 50 quilômetros quadrados, com casas e senzalas. “Tiradentes teve uma pena tão severa não por ser pobre, como muitos afirmam, mas porque foi o único que confessou o crime. E a legislação portuguesa era inclemente para com os réus confessos”, diz o historiador André Figueiredo Rodrigues. Como os Autos da Devassa, milhares de papéis e fotos sobre momentos decisivos da história do Brasil repousam, bem guardados e pouco divulgados, em centros de pesquisa até então restritos a especialistas – um celeiro de informações surpreendentes sobre um passado muitas vezes engessado em mitos. Parte desse material está em exibição no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, e tem em comum o selo do programa Memória do Mundo, da Unesco, dedicado a preservar acervos de grande valor histórico.
A coleção de documentos, que se inicia no período escravocrata, inclui de manuscritos da Guerra do Paraguai a mapas centenários e relatórios recentes da ditadura militar. Uma das preciosidades é o conjunto das únicas foros existentes da Guerra de Canudos, feitas em 1897 pelo baiano Flavio de Barros e arquivadas no Museu da República, no Rio: um exame detalhado comprova que o arraial encravado no senão da Bahia, onde os seguidores de Antônio Conselheiro se rebelaram contra o governo federal no fim do século XIX, não era a vila de miseráveis e fanáticos que se costuma descrever. Na época da guerra Canudos abrigava a segunda maior população do estado, tinha criação de gado, fábrica de rapadura e vendia couro de bode e ovelha até para fora do país. Em uma das fotos, em que um canudense preso posa ao lado de soldados do Exército, fica evidente que ele está mais bem alimentado e vestidos do que os militares com seu uniforme em farrapos. “Ao contrário do que se diz, durante a maior parte da guerra os moradores não passavam fome em Canudos e estavam bem preparados para combater no sertão”, reforça o historiador Frederico Pernambucano de Mello, autor de um livro sobre a revolta. As roupas de couro dos jagunços, fabricadas no próprio arraial, além de mais resistentes, tinham urna cor acinzentada que ajudava a camuflá-los na paisagem. Do outro lado, o uniforme dos soldados destoava pelas cores chamativas, o que fazia deles alvos fáceis. A sola das botinas se despregava com pouco tempo de caminhada e os fuzis ficavam danificados com a exposição ao sol. O Exército voltou derrotado de três expedições militares e só conseguiu invadir Canudos com o uso de artilharia pesada.
Sobre outro episódio determinante da história do Brasil, a Guerra do Paraguai (1864-1870), o enorme acervo guardado no Arquivo do Exército, também no Rio, confirma que durante o conflito, do qual o Brasil voltou vitorioso, doenças como varíola, cólera e febre amarela fizeram muito mais vítimas do que os combates: em um único hospital de campanha, entre 1867 e 1869, os soldados que morreram de cólera e diarréia somaram o dobro dos monos em decorrência de ferimentos de batalha. “O dado mostra a falta de organização do Exército e o total desconhecimento das condições de higiene na área de combate, aspectos decisivos para conduzir uma guerra”, diz Jorge Prata, doutor em história pela Universidade de São Paulo. Outro arquivo inscrito no programa da Unesco reúne os únicos registros sistemáticos de uma prática cruel e pouco divulgada: o abandono do corpo de escravos mortos em portas de igreja, praias e até pelas ruas das cidades. Nos anos de 1835 e 1836, conforme registros preservados na Santa Casa da Misericórdia da Bahia, metade dos enterros de escravos em Salvador foi de corpos que a própria irmandade encontrou largados na rua.
O conjunto é permeado ainda de curiosidades históricas até hoje circunscritas ao pequeno círculo de pesquisadores que se deteve sobre tão vasto material. Uma delas diz respeito à Forca Expedicionária Brasileira, que lutou na Itália durante a II Guerra Mundial, capítulo muito bem documentado em um acervo também sob a guarda do Arquivo do Exército. Os papéis permitem saber, por exemplo, quais objetos os 465 soldados carregavam no bolso ao perder a vida em meio à batalha: 144 levaram dinheiro, 116 tinham fotografias da família e um terço portava algum artigo religioso, como crucifixos, imagens de santo ou recortes com orações. Só em derramar luz sobre esses documentos, a exposição do Arquivo Nacional já presta um serviço de valor inestimável: apontar ferramentas e caminhos para um reexame do passado. Aí, quem sabe, os acontecimentos que fizeram a história do Brasil passem a ser contados com todas as suas nuances – de fato, como aconteceram.
Revista Veja
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