Correspondência entre os dois poetas e compositores revela a sensibilidade e a labuta necessárias para que a canção atinja seu ponto de precisão
Obras como as de Chico Buarque e Vinícius de Moraes são algumas das maiores riquezas da cultura brasileira; os sentimentos mais profundos, os amores mais arrebatadores ou singelos, a alma do nosso povo, seu cotidiano, suas lutas, dores, alegrias e anseios estão nelas revelados com tanto requinte poético e melódico, e ao mesmo tempo tão acessíveis aos ouvidos comuns, que muitas vezes nos pegamos a nos perguntar sobre como nascem essas canções.
O texto que publicamos hoje, uma correspondência entre Chico Buarque e nosso grande poeta Vinícius de Moraes sobre “Valsinha”, música composta na década de 70 e que até hoje é um dos grandes sucessos da MPB (letra de Chico e música de Vinícius) é bastante revelador sobre o processo minucioso e sensível de escolher e lapidar palavras para que elas alcancem seu objetivo, que norteia a produção dos grandes autores.
As cartas trazem o tom carinhoso e descontraído dos dois amigos, mas é interessante observar, ao mesmo tempo em que defende firmemente seus pontos de vista, a reverência e respeito afetuoso de Chico Buarque ao poeta Vinícius de Moraes, que conheceu, menino ainda, quando o já consagrado poeta freqüentava sua casa em visitas constantes a seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Os dois, grandes amigos, construíram ótimas parcerias em canções como “Olha Maria”, “Samba de Orly”, “Gente Humilde” e “Desalento”, entre outras.
De Vinícius de Moraes para Chico Buarque
Mar del Plata, 24 de janeiro de 1971
Chiquérrimo,
Dei uma apertada linda na sua letra, depois que você partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a você, mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo, me disse que Sérgio [Buarque de Hollanda] morava em Buri, 11, e lá se foi a carta para Buri, 11.
Mas, como você me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se você concorda com as modificações feitas.
Claro que a letra é sua, e eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor essas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de “Valsa hippie”, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui, no princípio, estranhou um pouco, mas depois se amarrou na idéia.
Escreva logo, dizendo o que você achou.
“Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/ Olhou-a dum jeito mais quente do que comumente costumava olhar/ E não falou mal da poesia como mania sua de falar/ E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse: vamos nos amar…/ Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar/ E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar/ Depois os dois deram-se os braços como a gente antiga costumava dar/ E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar…/ E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou/ E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou/ E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais/ Que o mundo compreendeu/ E o dia amanheceu em paz”.
De Chico Buarque para Vinícius de Moraes
Caro poeta,
Recebi as duas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela.
Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o “Apesar de você”. Então dá um certo medo de mudar demais.
Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gesse, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.
“Valsa hippie” é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo que há de hippie por aí. “Valsa hippie” ligado à filosofia hippie como você a ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver.
Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A sua solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que se segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippy. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou “xingou” mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar.
“Convidou-a pra rodar” eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e a tesão da trepada final. “Pra seu grande espanto”, você tem razão, é melhor que “para seu espanto”. Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá:
* Apesar do Orestes (vestido de dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. É gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado, o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao “ousar” que ela não queria por causa do marido chato e quadrado.
Escuta, ô poeta, não leva a mal a minha impertinência, mas você precisava estar aqui para ver como a turma gosta, e o jeito dela gostar dessa valsa, assim à primeira vista. É por isso que estou puxando a sardinha mais para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, talvez dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.
* Ainda baseado no argumento acima, prefiro o “abraçar” ao “bailar”. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.
* A terceira é a que mais me preocupa. Você está certo quanto ao “o mundo” em vez de “a gente”. Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz “e cheios de ternura e graça” em vez de “e foram-se cheios de graça”. Agora, estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer “Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar”. Só tem o probleminha da junção “em-estado”, o “em-e” numa sílaba só. Que é o mesmo problema do ”começaram-a”. Mas você mesmo disse que o probleminha desaparece dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado “começaram a se abraçar” sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente.
* Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, por que deu bolo com o “Apesar de você”, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a “Tonga”, mas a “Banda” vendeu mais que o disco do Toquinho solando “Primavera”.
Dê um abraço na Gesse, um beijo no Toquinho e peça à Silvana para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.
“Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/ Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar/ E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar/ E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar/ Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar/ Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar/ Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar/ E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar/ E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou/ E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou/ E foram tantos beijos loucos/ Tantos gritos roucos como não se ouvia mais/ Que o mundo compreendeu/ E o dia amanheceu/ Em paz.”
Fonte Hora do Povo
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