Flávio Henrique Lino 

“O povo assistiu a tudo bestializado”. A descrição de um observador da época  de como a população do Rio de Janeiro testemunhou o golpe de Estado de 15 de  novembro de 1889 marcou, de forma profética, o regime instalado pelas baionetas  que expulsaram do país o velho imperador Pedro II e sua dinastia. Para muitos  observadores da vida nacional, o evento registrado nos livros de História como  Proclamação da República deu início a uma longa experiência política que jamais  se aproximou de instaurar no país a res publica idealizada pelos  romanos — um governo que põe o bem-estar comum no centro de suas ações e  preocupações, com a participação ativa dos cidadãos. Sem ter sido convidado para  a festa de inauguração, o povo foi mantido a uma distância segura nos 124 anos  seguintes, enquanto as elites políticas impunham a sua receita de governo —  democrático ou não.
 As últimas semanas de protestos diários aqui no Brasil, no entanto, abriram  novas perspectivas para essa interpretação. De repente, sem anúncio prévio, as  multidões entraram de penetra na celebração do poder. Exatamente como fez, 224  anos atrás — comemorados amanhã — o povo que inventou a moderna noção de  cidadania, à qual os brasileiros aspiram e pela qual têm saído às ruas. Naquele  longínquo 14 de julho de 1789, os parisienses tomaram a Bastilha — prisão real e  símbolo do poder absoluto de Luís XVI — dando início a um movimento que mudou o  país e o resto da Humanidade. Coincidentemente, os franceses do século XVIII e  os brasileiros do XXI não estranhariam totalmente se trocassem de lugar. Os dois  países — cada um em sua época e bem guardadas as devidas proporções —  compartilham aspectos históricos semelhantes na situação que, na França, levou à  ruptura, e no Brasil, a uma situação inédita de pressão popular espontânea sobre  os centros de poder. 
— Na História, a cidadania não se democratiza, a longo prazo, pela vontade  dos que governam, mas sim pela base da sociedade. Quando a experiência das  desigualdades e injustiças se torna insuportável e quando o contexto se presta,  então a mobilização dos desprovidos se torna o motor não somente do  descontentamento, mas também de um futuro possível — disse ao GLOBO, da França,  o historiador Guillaume Mazeau, da Universidade Paris-1 Sorbonne e membro do  Instituto de História da Revolução Francesa.
O combustível desse motor de descontentamento é fartamente encontrado no  noticiário por aqui: serviços públicos precários, educação e saúde públicas sem  qualidade, transporte coletivo caro e ineficaz, corrupção em todos os níveis de  governo, privilégios abusivos gozados pela classe política — tudo isso  embrulhado numa carga tributária das mais altas do planeta, que faz o brasileiro  trabalhar de janeiro a maio só para pagar impostos. Tal desconexão entre  governantes e governados ficou mais do que clara na pesquisa Barômetro da  Corrupção Global 2013, divulgada dias atrás pela Transparência Internacional:  81% dos entrevistados consideraram os partidos políticos corruptos; 72% tiveram  a mesma opinião do Congresso, e 50%, do Judiciário. Além disso, 81% disseram  acreditar poder fazer algo contra a corrupção. 
— O que é novo nessas manifestações foi o excesso, tornou-se viral e explodiu  Brasil afora. Também vejo como novidade a possibilidade de articulação da  insatisfação: botar tanta gente na rua por um sentimento difuso de contrariedade  — diz a historiadora Isabel Lustosa. — Há uma falta de foco dos protestos, mas  claramente há uma crise de representação porque as pessoas não se sentem  representadas.
“o cidadão finalmente despertou”
A voz difusa das ruas tem mesmo sido alvo de críticas, sobretudo dos que  creem que a falta de foco pode fazer o movimento de reivindicações morrer na  praia, após as conquistas iniciais. Não é o que pensa, porém, o doutorando de  Filosofia Francisco Jozivan Guedes de Lima, da PUC/RS. Mergulhado no estudo de  como a opinião pública influencia o Estado, ele vê motivos para otimismo no  atual momento do país, após ter afirmado num artigo em 2012 que “a cidadania no  Brasil está adormecida”. As manifestações de que participou em Porto Alegre e as  discussões no Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia, na universidade  gaúcha, ajudaram a delinear uma nova perspectiva:
— Os protestos são um fenômeno novo, que vem de baixo. O futuro está em  aberto, e é preciso ser realista porque os políticos vão resistir a mudanças  reais. Mas o que importa é que o povo saiu da inércia. O cidadão finalmente  despertou.
E, a julgar pela presteza com que o Congresso se apressou a tentar acalmar as  ruas, desta vez foram os políticos que a tudo assistiram  bestializados
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