domingo, 14 de julho de 2013

Crônicas do Dia - Entre ideias e atos

Imagine-se o que poderia acontecer se algum órgão de imprensa brasileiro publicasse as linhas que vão logo abaixo — no caso, é claro, de que se consiga encontrar em algum lugar do território nacional um autor disposto a escrevê-las, com seu nome e sobrenome assinados logo depois do título.

Vamos a elas:
“Eu direi que não sou, nem jamais fui, a favor de implantar, sob qualquer forma que seja, a igualdade social e política entre as raças branca e negra — que não sou, nem jamais fui, a favor de fazer com que negros sejam eleitores ou jurados, nem de qualificá-los para ocupar cargos públicos, nem de permitir que casem com pessoas brancas. E eu direi, além disso, que existe uma diferença física entre as raças branca e negra que, segundo acredito, impedirá para sempre que ambas vivam juntas em termos de igualdade social ou política. E, considerando-se que elas não podem viver assim, é preciso que haja, em sua convivência, uma posição de superior e inferior — e, tanto quanto qualquer outro homem, eu sou a favor de que a posição superior seja atribuída à raça branca. Aproveito esta ocasião para dizer que o fato de o homem branco deter a posição superior não significa, em minha percepção, que se deva negar tudo aos negros”.
Voltando ao começo: quem escrevesse e publicasse essa prosa bárbara no Brasil de hoje seria condenado, no mundo dos desejos, a passar toda a eternidade indo e voltando do primeiro ao nono círculo do inferno.
Puna-se aqui mesmo na terra, de qualquer forma, o autor do crime — e com o máximo do rigor permitido pela lei penal, certo? Não tão certo quanto parece. Na verdade, recomenda-se a acusadores em geral ir com muita calma nessa história. As palavras venenosas do texto citado no parágrafo anterior não são inventadas. Têm, portanto, um autor de carne e osso, e esse autor é altamente problemático: seu nome é Abraham Lincoln.
Ele mesmo, Lincoln, o presidente americano que aboliu a escravidão nos Estados Unidos e se tomou o maior combatente em favor da liberdade dos negros em toda a história da humanidade.
Lincoln não foi um teórico. Comandou uma guerra civil na qual morreram 600 mil homens nos Estados Unidos, entre 1861 e 1865. Recusou-se a aceitar a paz oferecida pelos estados americanos do sul, que não queriam mais combater, mas queriam manter os escravos; dizia que o essencial não era acabar a guerra, mas sim acabar a escravidão.
Morreu assassinado, logo após sua vitória, por um escravagista transtornado pelo desejo de vingança. Muito bem: quem se habilitaria a pôr esse homem na cadeia, por pregação do racismo?
O manifesto racial de Lincoln não foi uma tolice de juventude: ele apresentou essas suas ideias aos 49 anos de idade, num debate em 1858, dois anos antes de eleger-se presidente e de iniciar, no ano seguinte, a guerra contra a separação dos estados que pretendiam manter a escravatura. O que teria acontecido com ele? Nada mais do que acontece com outros seres humanos — o convívio, na própria cabeça, de pensamentos que não se ligam entre si.
Lincoln acreditava na superioridade da raça branca. Ao mesmo tempo, e com a mesma firmeza, acreditava que escravizar negros era uma abominação intolerável, contra a qual valia a pena entrar numa guerra sem trégua.
Uma das possíveis lições disso tudo é que entre ideias e atos há mais coisas do que supõe a nossa vã filosofia — e que a prudência aconselha a julgar os homens menos pelo que dizem e mais pelo que fazem.
Robespierre, personagem-símbolo da Revolução Francesa, é um homem amaldiçoado até hoje na França; em toda Paris, não há uma única avenida, rua, praça, estátua ou o mais reles beco com o seu nome.
Entende-se: durante o seu auge, no período de um ano em que presidiu o tétrico Comitê de Salut Public, Robespierre comandou o que se chamava oficialmente de “Governo do Terror”, curiosa forma de regime que considerava o assassinato em massa a maneira mais eficaz de gerir um país.
Até hoje não se sabe quanta gente ele mandou para a guilhotina entre julho de 1793 e julho de 1794; fala-se de 40 mil a 500 mil pessoas, sendo que a última cabeça a rolar foi a sua própria.
E no entanto acredite: cerca de quatro anos antes, no que certamente é um dos maiores momentos da história mundial do humor negro, Robespierre propôs à Assembleia Nacional a abolição da pena de morte.
Atirar primeiro e pensar depois pode acabar dando nisto: Abraham Lincoln vira um sórdido racista, e Robespierre, um campeão dos direitos humanos.
 
J.R. Guzzo - Revista Época

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