JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo
Que dias temos vivido, hein? De monotonia é que não podemos fazer queixa.
Continuo achando que ninguém sabe como surgiu e em que vai terminar a confusão
das últimas semanas, mesmo depois que o Congresso foi tomado por uma operosidade
nunca vista, apressando-se em aprovar medidas antes quase impossíveis.
Apareceram palpites em grande variedade, mas nenhum me convenceu muito ainda.
Recebo e-mails alarmistas e alarmados, leio artigos e reportagens, ouço
comentaristas de televisão e assisto a vídeos na internet, e a profusão de
diagnósticos e prognósticos chega a entontecer. Complica-se isto com a
circunstância inquietante de que, se levarmos em conta todas as denúncias que
não cessam de pipocar, seremos forçados a inferir que não se pode acreditar em
nada, até naquilo que testemunhamos pessoalmente, pois o que vemos, ou até o de
que participamos, pode não ser mais que a ação de inocentes úteis que não sabem
o que fazem, ou uma farsa para ocultar interesses escusos de grupos e
organizações daninhas, ou o que lá se queira pensar.
Na mídia, claro, não se pode confiar. Jornais, rádios e televisões são
mantidos no cabresto do governo, que lhes fornece anúncios e comerciais
bilionários, além de abrir facilidades fiscais e fechar os olhos a graves
irregularidades. Paradoxalmente, a mídia, no ver do mesmo governo e seus
correligionários, é golpista e a voz das elites conservadoras, que tudo fazem
para derrubar um governo de raízes populares, devendo por isso mesmo ser
submetida a "controle social". Voltando ao outro lado, a mídia está toda
aparelhada por militantes a serviço do governo, em todas as redações, são eles
os que realmente mandam, só se publica ou vai ao ar o que o governo quer.
Trocando de lado outra vez, os colunistas e comentaristas têm todos o rabo
preso, um porque é funcionário fantasma do gabinete de um político, outro porque
é um carreirista puxa-saco dos patrões e ganancioso, outro porque é um conhecido
fascista - ou comunista, conforme - e por aí vai, parece uma gangorra.
É uma situação terrível, porque, por mais que não se queira, a mídia sempre
nos alcança. Mesmo que não atentemos em qualquer noticiário ou comentário, o
vizinho, o colega de trabalho e o pessoal do boteco não fazem o mesmo e
terminamos vítimas indiretas da má informação. Claro, se não podemos acreditar
na mídia, também não podemos acreditar no vizinho, porque ele, como os amigos do
boteco, tiram da mídia suas informações e, não raro, até suas opiniões. Não
podemos acreditar cegamente nem em nós mesmos, porque é muito difícil, ou
impossível, fugir da influência do que circula na mídia e não há como avaliar o
que, em nossa maneira de pensar sobre fatos como as manifestações de rua, não
terá tido origem na mídia.
A tanta razão para desconfiança e dúvida some-se o atabalhoamento em que
ficaram os governantes. Em algumas ocasiões, lembrava uma sátira ou uma comédia
de pastelão. Também confrange os súditos serem informados de que, na hora do
aperto, a presidenta amarelou e procurou o ex-presidente e atual presidento,
para saber o que fazer, como uma adolescenta em busca do apoio paterno. Além de
tudo o que essa dependência patética representa, o sujeito fica, pelo menos no
meu caso, um pouco envergonhado com essas coisas, aquele tipo de vergonha que a
gente sente pelos outros. Em seguida, ela apareceu para se pronunciar, virando a
cabeça para lá e para cá enquanto falava, como quem lê o teleprompter com certa
dificuldade. Ou será que ela não sabia bem o que significavam as palavras que
repetiu em voz alta? Talvez não soubesse mesmo, naquelas horas nervosas, porque,
no dia seguinte, como todos viram, ela disse que não disse o que todo mundo
pensou que ela dissera - e eis aí mais um exemplo de como a verdade tem andado
cada vez mais fugidia.
Mas, se as ilações, hipóteses e explicações agora circulando ainda não
conseguem ser inteiramente convincentes e ainda paira no ar alguma iminência de
monta, por enquanto não notada, o fato é que a ruidosa e universal rejeição a
políticos e partidos que vem marcando as manifestações acendeu uma luzinha
vermelha na mente dos governantes, tanto assim que eles vêm procurando atender
às demandas com uma presteza que nos deixa de queixo caído. Também eles não
sabem em que tudo isso vai terminar e, pelo sim, pelo não, tratam de corrigir
como podem aquilo que não só o povo aponta, mas eles há muito sabem que está
errado.
Aguilhoados pelos verdadeiros donos da soberania, os governantes mudaram sua
postura habitualmente arrogante, indiferente ou cínica e baixaram a cabeça,
diante da rebelião dos governados. As instituições também vêm funcionando e
cumprindo seu papel. Ou seja, não é necessário nenhum radicalismo, basta que
passemos a abandonar os costumes e práticas que têm caracterizado nossa vida
política e contra os quais deveremos estar em permanente vigilância e possível
mobilização. É primarismo advogar que sejamos governados "diretamente" pelo
povo, através de decisões coletivas tomadas através de internet, porque isso só
iria redundar nas decisões apressadas, emocionais e inconsequentes que as
multidões, mesmo as eletrônicas, costumam tomar - e uma situação assim redunda
em anarquia. Tampouco podemos ceder ao impulso, talvez atávico, de esperar a
volta do rei Sebastião, que nos libertará, com virtude, carisma e amor ao povo,
de todas as nossas aflições. Creio que já há aspirantes a esse posto, mas onde
estava Sebastião quando começaram as manifestações e as mudanças já obtidas?
Estava malocado, esperando a hora de dar o bote e abocanhar o que não foi feito
por nenhum Sebastião, mas pelo povo. Não se pode garantir que o povo não seja
outra vez engabelado, mas venham com outra conversa, que o velho papo já não
cola.
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