Desde que me conheço por gente, a religião não significa nada para mim
Até poucos dias, eu me sentia completamente envolvido com os assuntos dominantes na mídia e nas conversas a meu redor. Protestos, violência policial, discussões sobre o futuro da política e das nossas cidades, o fogo-fátuo de um plebiscito. É curiosa, portanto, a sensação de estar totalmente alheio aos dois assuntos onipresentes nos jornais e timelines no momento em que escrevo, a visita de um Papa e o nascimento de um bebê real na Inglaterra.
Foi interessante ver as imagens da comitiva do Papa prensada entre os ônibus e o povaréu numa grande avenida do Rio de Janeiro, e digo isso sem um pingo de schadenfreude ou espírito de porco. É que foi interessante mesmo. A atitude despreocupada do Papa Francisco abençoando bebês enquanto os motoristas dos ônibus reagiam com impaciência e a escolta, em pânico, procurava contornar a situação; a assimetria entre a simplicidade do pontífice, de um lado, e a pompa oficial e o aparato de segurança do outro; e nos dias seguintes, a graça de ver os fiéis transformados em fãs de um ídolo pop.
A postura que tento descrever está tão distante do devoto religioso quanto do crítico ferrenho do catolicismo ou dos males da religião. Não me desce muito bem quando a apresentadora do telejornal nacional, sorrindo em estado de graça, enfatiza os exemplos do Papa “para todos nós”, mas liberdade de crença também é liberdade de expressão, então segue o baile. Posso desligar a TV a qualquer momento e escolher acompanhar as transmissões ao vivo feitas por jornalistas independentes mostrando abusos e prisões arbitrárias da PM do Rio nos protestos daquele mesmo dia. Também não me emociona a militância de esquerda que aproveita para tirar onda de um dos mais importantes líderes religiosos do planeta.
Desde que me conheço por gente, a religião (no sentido de culto a divindades) não significa nada para mim. Não é aversão. Trata-se de uma incapacidade medular de se identificar com o próprio princípio da coisa, com a existência de seres ditos superiores e a moral quase sempre dogmática se sobrepondo à ética individual, baseada em sabedoria e esclarecimento, que prefiro seguir e pregar. Simpatizo com a figura pública do Francisco e aprecio seus exemplos de humildade — acho que eles fazem, sim, diferença, embora nada tenham a ver com problemas de outra ordem relacionados à Igreja, como a posição retrógrada diante de questões como homossexualidade e controle de natalidade.
Nunca acreditei em deuses, sejam as pitorescas entidades dos politeísmos ou o grande Deus único, com maiúscula, do monoteísmo judaico-cristão. Estudei em colégio judaico durante parte da infância, e durante muito tempo não fazia a menor ideia do que os professores e colegas estavam falando quando mencionavam Deus. Ler a Torá em hebraico era instigante, mas da mesma maneira que estudar geografia, ler gibis ou assistir “Akira” em VHS era estimulante. Tive que perguntar para os adultos, e, depois de coletar um conjunto de informações, fiz minha primeira investigação pessoal dessa natureza e concluí que não acreditava em deus nenhum. Desde então me mantenho mais ou menos receptivo a uma epifania, mas sigo intimamente convicto de que não vai acontecer.
No entanto, também não consigo me identificar com os ateus combativos como Richard Dawkins e Christopher Hitchens, que atacam as crenças com base em sua irracionalidade. Fé não depende da razão, e a crença aferrada na inexistência de Deus é uma modalidade de fé. Suspeito que a maioria dos ateus, os que preferem evitar gritaria e não aderir a esse tipo de debate, compreende o que estou dizendo. Os religiosos com frequência zombam da expectativa dos ateus de obter uma prova científica da existência de Deus, ignorando que, para muitos ateus, tal prova é tão irrelevante quanto para eles, pois a ideia de um universo sem deus é uma crença apaixonada como tantas outras.
Para algumas pessoas, a ausência de um mundo transcendente e de vidas ulteriores é não apenas intuitivamente correta, mas também elegante, bela e confortante. Não é justo nem injusto que se morra da forma que morremos, que não haja significado nem julgamento final, que a moral seja um conjunto de valores dinâmicos resultante de nossas relações mundanas uns com os outros e com o ambiente a que pertencemos. Tudo isso parece no lugar. O nada, a transitoriedade, a finitude, a percepção da vida como um acidente ou um capricho teleológico sem seres supremos envolvidos — esse é o nosso sagrado (e sim, ateus também possuem uma percepção aguda do sagrado). O temor e o tremor, quando ocorrem, são estranhamente estimulantes.
Espero que a visita do Papa tenha sido tranquila, que ele inspire pessoas e consiga fazer bem à Igreja Católica, e que seus fiéis se beneficiem genuinamente com sua presença.
Quanto ao bebê real, plmdds né.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/plmdds-9230280#ixzz2aWed4rOn
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