segunda-feira, 8 de julho de 2013

Te Contei, não ? - Para além do Carnaval

Foto: Commons.wikimedia.org
 
Mesmo quem vive em grandes metrópoles, onde impera a ditadura da mídia e não há muito espaço nem incentivo a manifestações populares, ao se deparar com os resistentes cultivadores de algumas delas, como os congados - também chamados de congos e congadas -, imediatamente é impelido a participar. Os sons dos gungas - chocalhos de metal presos às pernas dos brincantes -, somados aos tambores de timbres diversos, nos arrastam e parecem despertar em nós um "eu" desconhecido, que através da dança se comunica tanto com as divindades e ancestralidade, quanto com os que estão a nossa volta e conosco mesmos.
"OS SONS DOS GUNGAS, SOMADOS AOS TAMBORES DE TIMBRES DIVERSOS, NOS ARASTAM E PARECEM DESPERTAR EM NÓS UM "EU" DESCONHECIDO, QUE ATRAVÉS DA DANÇA SE COMUNICA TANT O COM AS DIVINDADES E ANCESTRALIDADE, QUANTO COM OS QUE ESTÃO À NOSSA VOLTA E CONOSCO MESMOS".
No início de abril - primeiro domingo após a Páscoa - mais de uma centena de grupos de congado e de Moçambique tomaram a cidade de Aparecida do Norte, para festejar o italiano santo negro São Benedito, descendente de escravizados etíopes, no século XVI. É cultuado naquela cidade, na modesta igrejinha, inaugurada em 1924, com pórtico e beiral esculpidos pelo mestre Chico Santeiro. Afora os festejos da própria Nossa senhora Aparecida, em outubro, essa é a maior manifestação regiosa popular do Vale do Paraína, atraindo caravanas, não só do Estado São Paulo, mas também de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, entre outros.
Porém, é importante lembrar que tantos os congados quanto os moçambiques surgem no Brasil com o culto a Nossa Senhora do Rosário, que gerou o surgimento das Irmandades de Homens Pretos e Pardos. Dentro dessas organizações, nasceu a necessidade de recriação de irmandades, dedicadas as devoções a São Benedito. Por isso, o santo é festejado não numa data única, mas na de fundação da entidade local que o devociona.
Ali no Vale do Paraíba, São Benedito era e é festejado em Guaratinguetá, na segunda-feira após o domingo de Páscoa. Ainda em tempos de escravidão, a necessidade de conter os ânimos dos escravizados levou os fazendeiros a dar-lhes esse dia de folga louvarem seu santo padroeiro. Os devotos que moraram em Aparecida do Norte se deslocavam para a cidade vizinha para participar, até que em 1909, se fundou a Irmandade de São Benedito também nessa cidade, onde as rezas e encontros aconteciam na pequena capela de Nossa Senhora da Piedade.
O banto cristianismo
No ano seguinte aconteceu a primeira festa de São Benedito na Praça Nossa Senhora Aparecida, em frente à antiga basílica. Nove anos depois, com a demolição a capelinha, os devotos do santo negro começaram a construir para ele a igreja atual que só ficou pronta em 1924. Dois anos antes, porém, a manifestação popular - ali chamada de congada - já estava incorporada aos festejos. Na década de 1970, porém, para evitar mais um feriado local, a festa passou para o domingo seguinte à Páscoa. Apesar dessa ligação profunda com a religiosidade cristã, os congados trazem a memória dos grandes impérios africanos - em especial do Rei do Congo -, aqui representado pela história de Chico Rei. Não se erra ao afirmar que se trata de uma manifestação de origem Banto, imbuída da memória dos povos de toda aquela região abaixo do rio Congo e ecoada pelo nosso País afora, através dos ngomas (tambores). Reis e rainhas são coroadas e reverenciadas pelas guardas, com seus generais, capitães e demais guerreiros.
As tradições se baseiam no aparecimento de Nossa Senhora do Rosário, que emergiu das águas. Os escravocratas brancos tentaram retira-la, mas não conseguiram. Ela só saiu ao som dos batuques dos escravizados e se postou sobre o Jeremias, o maior dos três tambores sagrados (atabaques) - os outros dois são o Santana e o Santaninha -. Essa pérola da oralidade afro-brasileira assume outros fundamentos mais profundos no candombe, a parte de maior conteúdo banto do congado e que é mantido sob sete chaves, em linguagem enigmática, longe da vista dos forasteiros.
Por isso mesmo, os estudiosos, que apenas associam os cortejos reais dos congados com a tradição ibérica que memoriza as batalhas de Carlos Magno contra os mouros, simplesmente ignoram alguns dos conteúdos mais eloquentes fornecidos pela diáspora africana à cultura popular brasileira.

REvista Raça Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário