Para confundirem a voz das ruas, os poderosos de Brasília exercitam três antigos vícios de linguagem iniciados pela letra e: eufemismo, empolamento e embromação
Quando a linguagem não está de acordo com a verdade das coisas nada chega a bom termo", ensinou o filósofo chinês Contudo, que viveu entre os séculos VI e V antes de Cristo. O Brasil deste inverno de 2013 ilustra dramaticamente a máxima ancestral. Mais do que numa crise política, estamos mergulhados numa crise de sentido. Se o pânico que se alastrou pelos centros de poder deixa claro que a "voz das ruas" foi ouvida, parecem ter faltado legendas para que fosse compreendida, como se as cartolinas erguidas pelos manifestantes não trouxessem propostas, e sim - como disse na semana passada o presidente do STF. Joaquim Barbosa - empoladas "proposituras". Os manifestantes queriam redução no preço das passagens de ônibus? Os políticos puseram-se a discutir a "mobilidade urbana". Os cartazes improvisados cobravam ética e espírito público? O Presidente do Senado Renan Calheiros justificou na quinta-feira seu uso privado de um avião da FAB alegando tratar-se de um "avião de representação" - escolha vocabular que afronta diretamente um dos personagens mais presentes nos protestos, o manifestante que declara que este ou aquele político "não o representa".
"Tenho a sensação de que a sociedade brasileira está falando uma língua e o poder, outra", afirmou na quinta-feira o jornalista Juan Arias, correspondente do diário El País, num dos debates sobre os protestos agendados pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Curiosamente, suas palavras ecoavam as que dissera três dias antes o secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, ao repreender o ministro da Fazenda, Guido Mantega, por seu discurso otimista: "O governo está falando uma coisa e o povo nas ruas. falando outra". Dilma Rousseff pegou carona no diagnóstico babélico, mas trocou marotamente seus sinais, ao defender o plebiscito que tirou da manga: "Não acho que o povo não seja capaz de aprender porque as perguntas são complicadas". A questão, claro, é outra: serão os políticos capazes de aprender o que as ruas gritaram com palavras de inédita simplicidade?
Se é verdade que ainda não surgiu no mundo quem dê uma resposta eficaz - acadêmica ou política - à insatisfação difusa que vem provocando revoltas em metrópoles espalhadas pelo globo, a crise brasileira tem traços peculiares. País em que a tradição bacharelesca convive com um monstruoso déficit educacional, o exercício do poder sempre se cercou por aqui de uma linguagem propositalmente opaca para a maioria da população. O famoso juiz americano Billings Leamed Hand declarou em 1959 que "a linguagem da lei não pode soar estrangeira aos ouvidos de quem deve cumprilar O princípio nunca vingou na terra do pedante Rui Barbosa.
O resultado é que? num momento histórico em que os avanços tecnológicos levam as crises políticas a se confundirem com crises de comunicação, como afirma o sociólogo espanhol Manuel Castells em seu livro Comunicação e Poder, de 2009. a tarefa brasileira é mais difícil: atualizar-se com as redes sociais que a crescente classe média maneja como armas no século XXI sem ter. sob certos aspectos. entrado para valer na era da transparência e da prestação de contas que caracterizou a democracia representativa amadurecida no século XX. Antes que a crise chegue àquele "bom termo*" confuciano, será necessário extirpar da cultura política brasileira três vícios de linguagem iniciados pela letra e: eufemismo. empolamento e embromação. Às vezes todos se manifestam ao mesmo tempo, como na expressão "vontade política". aquela que está sempre em falta % - e que é um sinônimo pomposo de "vergonha na cara.
Revista Veja
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