quarta-feira, 24 de julho de 2013

Te Contei, não ? - O legado de Machado de Assis

        

 
A herança - ou legado - de Joaquim Maria Machado de Assis, cujo centenário da morte se completa neste ano, não pertence a ninguém em particular, mas à humanidade. Um tesouro cultural que a maioria dos brasileiros desconhece e que estudantes, muitas vezes, rejeitam quer por desconhecer sua riqueza quer pela obrigatoriedade da leitura. Afinal, tudo o que é proibido é prazeroso, já o que é obrigado...
Então, esqueçamos os vestibulares, os trabalhos escolares e as provas. Em vez disso, vamos saborear a genialidade deste cronista, contista, romancista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, ensaísta e crítico literário. Como afirma a mestra em Educação pela UFScar Regina Helena Moraes: "Preto, mulato, branco, judeu... a obra de Machado ultrapassa todos os limites cromáticos e étnicos. Ele rompeu as fronteiras de um grande escritor. É um gênio da literatura nacional e universal".
Na criação de seus personagens, desmascara suas almas - como se os olháspor semos pelo buraco de uma fechadura -, revelando os valores corrompidos da burguesia do século 19, quando o Rio de Janeiro era a capital do império e dos primeiros anos da República. Estão ali desnudados o egoísmo, a ganância, o adultério, a falta de solidariedade, a ignorância, a idiotice, o parasitismo, a beatice, o fingimento, a ausência de sacralidade da Igreja, entre outros.
Ao desvelar o âmago desses tipos humanos, critica a sociedade de seu tempo. Em suas memórias póstumas, por exemplo, o personagem Brás Cubas afirma sobre a primeira mulher por quem se apaixonou: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis". Com metáforas e sagacidade, por vezes uma ironia ácida, ele usa a sugestão para que formemos nossa opinião sobre os fatos narrados. Afinal, em Dom Casmurro, Capitu - com seus olhos de ressaca - traiu Bentinho, ou não?
MUITOS FICAM SURPRESOS AO SABER DA ASCENDÊNCIA AFRICANA DE ASSIS. ELE ERA NETO DE ESCRAVOS ALFORRIADOS E SUA MÃE ERA PORTUGUESA.
Volta e meia alguém se surpreende ao saber da ascendência africana de Machado de Assis. Seus retratos, principalmente depois de maduro, geralmente não fazem jus a essa informação. Já os da juventude revelam a mestiçagem deste escritor que jamais saiu do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu em 21 de junho de 1839 e onde faleceu, aos 69 anos, em 29 de setembro de 1908, em sua casa no bairro de Cosme Velho. Seu pai, o pintor de paredes Francisco José de Assis era filho de escravos alforriados e a mãe Maria Leopoldina Machado de Assis era portuguesa. O escritor também se casou com uma portuguesa da Ilha dos Açores, Carolina Augusta Xavier de Novais, com quem viveu por 35 anos, até a morte dela, em 1904. Como Brás Cubas, ele também não teve filhos.
Se estivesse lendo esta matéria, Machado certamente torceria o nariz, diante do parágrafo que se segue. Mas é impossível não revelar sua infância humilde, no Morro do Livramento, e a fragilidade de sua saúde. Era epiléptico e, menino, deve ter amargado muitas gozações por ser gago, canhoto - quando só era considerado normal o destro - e extremamente tímido. Vítima da crueldade das crianças para com os que são diferentes. Não bastassem tais dificuldades, a morte arrebatou-lhe a mãe e a única irmã muito cedo. Ele odiava ser apontado como exemplo de superação.
A madrasta Maria Inês, uma lavadeira negra, assumiu a criação do menino. Foi ela quem o matriculou na escola pública, que ele freqüentou por curto período, e quem o levava à igreja da Lampadosa, onde Machadinho era coroinha. Quando tinha 12 anos, o pai também morreu e o garoto mudou-se com a madrasta, que também era doceira de mão cheia, para São Cristóvão. Como milhares de outras crianças, também viveu a tragédia do trabalho infantil, vendendo doces que Inês fazia.
O que diferencia os campeões dos fracassados? Sorte? O apoio de alguém?
Ambos são muito importantes, mas o fator principal são o empenho, a dedicação e, em alguns casos, a obsessão. Assim era o jovem Machado de Assis. Depois dos primeiros anos de escola pública, tornou-se autodidata, sob a orientação de um padre. Teve aulas de francês com a dona de uma padaria de São Cristóvão e "devorava" os livros da biblioteca da madrinha, Maria José de Mendonça Barroso, patroa de Inês e viúva do brigadeiro Bento Barroso Pereira, senador do império.
Contrariando a tendência francesa da intelectualidade brasileira, Machado também estudou inglês e assim pode ler clássicos da língua inglesa, que o influenciaram, como os de William Shakespeare, Edgar Allan Poe e do poeta Wordsworth, que afirmava: "A infância deixa rastros em nossa memória, como sulcos num rosto ou num campo lavrado". Inspirado nesta frase, escreveu a crônica intitulada: "O menino é o pai do homem", sobre o peso da infância na formação de nossa vida adulta.
"MACHADO DE ASSIS É O MAIOR ESCRITOR AFRODESCENDENTE DE TODOS OS TEMPOS", AFIRMA O RENOMADO CRÍTICO NORTEAMERICANO HAROLD BLOOM
E foi lendo muito e aprendendo sozinho outros idiomas, como o alemão, que se transformou no "maior escritor afro-descendente de todos os tempos", conforme afirma o crítico literário norte- americano Harold Bloom. Até chegar lá, porém, trabalhou de balconista, vendedor, aprendiz de tipógrafo e, mesmo famoso pelas crônicas, novelas e contos publicados em jornais e revistas e também por seus livros, ocupou vários cargos no funcionalismo público.
Seu primeiro poema, "Ela" foi publicado na revista Marmota Fluminense, aos 16 anos. E o primeiro livro a trazer a sua assinatura foi a tradução de um livreto francês, que ganhou o título de "Queda que as Mulheres Têm para os Tolos", que demonstra o bom humor e o espírito irônico, que o levaram a integrar-se à sociedade lítero-humorística Petalógica., fundada pelo editor Francisco de Paula Brito, que reunia boêmio e intelectuais da época. Foi criticado por não ter participado diretamente das lutas sociais de seu tempo, como as que levaram à abolição da escravatura e à derrubada do império. "Com uma canção também se luta irmão", cantou Wilson Simonal, e Machado o fez com seus escritos. O pesquisador de literatura brasileira, Mauro Rosso conta que até como alto funcionário do Ministério da Agricultura - órgão que tratava da política das terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre -, ele "emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a lei e sobre o preceito de liberdade para os filhos de escravos".
Sua negritude também é questionada, não só pela pele clara e pelos cabelos apenas ondulados, mas por ter, aparentemente, vivido apartado das comunidades negras e da cultura afro-brasileira. Acusam-no até de ter liderado a campanha que barrou o ingresso do poeta negro Cruz de Souza na Academia Brasileira de Letras, da qual é fundador. Contradições à parte, não seria de se estranhar que o mais importante escritor brasileiro refletisse o sonho de branqueamento, que sempre norteou a cultura e as elites deste que é o país com a maior população negra fora da África.
A doutora em educação pela USP, Sueli Carneiro, diretora da ong Geledés - a Instituto da Mulher Negra, ressalta a forma categórica com que as elites brasileiras "para ofertar-lhe o reconhecimento a um talento, que não podia ser negado, teve que o destituir das marcas de sua negritude". E relembra como o poeta Olavo Bilac se referiu ao escritor: "Machado de Assis não é um negro, é um grego'".
Negro para nós, ou grego para eles, Machado é para sempre. E 100 anos após sua morte, ninguém conseguiu ainda superar a organização da linguagem machadiana. Se os poemas de Oswald de Andrade são "biscoitos finos", as obras de Machado de Assis são deliciosos manjares, banquetes inteiros para serem saboreados lentamente, bocado a bocado. Neles, a sociedade brasileira está inteira. Como era no século 19, como é hoje e como jamais deixará de ser.
 
UM APÓLOGO
por MACHADO DE ASSIS
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada,
para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
- Deixe-me, senhora.
- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com
um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na
cabeça.
- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha
não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que
Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
- Mas você é orgulhosa.
- Decerto que sou.
- Mas por quê?
- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama,
quem é que os cose, senão eu?
- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que
quem os cose sou eu e muito eu?
- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço
ao outro, dou feição aos babados...
[...]
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou
a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum
ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e
puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando,
acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
- Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa,
fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar
com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da
costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande
e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é
que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze
como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam,
fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse,
abanando a cabeça:
- Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!


PARA LER E RELER
Não há desculpas para não ler as obras de Machado de Assis. Além de publicações bem baratas, é possível encontrar seus escritos no site:
www.dominiopublico.com.br.
Romances
Ressurreição (1872)
A Mão e a Luva (1874)
Helena (1876)
Iaiá Garcia (1878)
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
Casa Velha (1885)
Quincas Borba (1891)
Dom Casmurro (1899)
Esaú e Jacó (1904)
Memorial de Aires (1908)
Poesia
Crisálidas (1864)
Falenas (1870)
Americanas (1875)
Ocidentais (1880)
Poesias completas (1901)
Livros de contos
Contos Fluminenses (1870)
Histórias da Meia-Noite (1873)
Papéis Avulsos (1882)
Histórias sem Data (1884)
Várias Histórias (1896)
Páginas Recolhidas (1899)
Relíquias da Casa Velhas (1906)
Peças de teatro
Hoje avental, amanhã luva (1860)
Queda que as mulheres têm para os tolos (1861)
Desencantos (1861)
O caminho da porta (1863)
O protocolo (1863)
Quase ministro (1864)
Os deuses de casaca (1866)
Tu, só tu, puro amor (1880)
Não consultes médico (1896)
Lição de botânica (1906)
Publicações póstumas
Crítica (1910)
Teatro coligido (1910)
Outras relíquias (1921)
Correspondência (1932)
A semana (1914/1937)
Páginas escolhidas (1921)

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