quarta-feira, 24 de julho de 2013

Crônicas - Fábulas do desengano - Roberto Pompeu de Toleto

12/05/2013
 

Roberto Pompeu de Toledo: Fábulas do desengano

Nada mais a dizer sobre o que já foi dito (Imagem: Cartão postal russo com ilustração do Grande Inquisidor, de Dostoievsky)
Nada mais a dizer sobre o que já foi dito (Imagem: Cartão postal russo com ilustração do Grande Inquisidor, de Dostoievsky)
Artigo publicado em edição impressa de VEJA
 

Uma das passagens mais conhecidas de Dostoievski é a história do Grande Inquisidor, relatada no livro Os Irmãos Karamazov. O cenário é Sevilha, nos tempos da Inquisição. Ainda na véspera, uma centena de hereges havia sido queimada, para maior glória de Deus, num soberbo auto de fé. Eis que agora… quem aparece, caminhando suavemente, na mesma praça? Ele mesmo: Jesus!
Estava escrito que um dia voltaria. Decidiu voltar, bem de acordo com seu conhecido gosto pelas estratégias de risco, num momento da história em que os que se fizeram de donos de sua mensagem adotaram a política de silenciar pelas chamas os insubmissos, os desobedientes, os desviantes ou os considerados como tais.
A multidão se aglomera diante dele. Vem um cego e pede: “Senhor, cura-me”. Um gesto, e o cego vê. O povo rejubila-se, canta hosanas. No momento em que adentra a catedral, encontra o pequeno caixão de uma criança morta. A mãe se aproxima, entre lágrimas. ‘‘Ressuscita minha filha.” Ele ordena à criança: “Levanta-te” — e ela se levanta.
Nesse momento, surge em cena o Grande Inquisidor. É um velho alto, de face seca e olhar no qual brilha um sinistro clarão. Ele viu tudo: o cego que agora enxerga, a criança que voltou à vida. Aponta o dedo para o autor dos milagres e ordena aos guardas: “Prendam esse homem”. O preso é recolhido ao calabouço dos hereges.
À noite, o Grande Inquisidor aparece na cela. É um homem muito ciente de seus deveres e de sua autoridade e por isso lhe comunica que, no dia seguinte, será queimado. Não dá ao condenado nem o direito de palavra. Ordena-lhe: “Não digas nada, cala-te. Que poderias tu dizer? Não tens o direito de acrescentar uma só palavra ao que disseste outrora”.
Dostoievski tinha em mente Jesus e os descaminhos de sua herança nas mãos dos que dela se apropriaram. Uma moral expandida da fábula poderia incluir os grandes pensadores, os políticos, os economistas ou os artistas em nome dos quais seus seguidores, admiradores ou intérpretes haurem prestígio e autoridade. E se eles voltassem? Se Marx voltasse, ou Freud, ou Darwin?
Como reagiriam os chefes de suas respectivas igrejas? Para ficar mais perto, e se Bolívar voltasse à Venezuela? Teria ele o direito de acrescentar alguma palavra ao que disse outrora?
O escritor italiano Ítalo Svevo (1861-1928) deixou esboçada uma história, que afinal a morte o impediu de desenvolver, na qual um velho, ao preparar-se para dormir, à meia-noite, lembra que essa é a hora em que Mefistófeles costuma aparecer e propor seus famosos pactos. A esposa, na cama, já dorme placidamente.
O velho deixa-se levar pelo devaneio e conclui que — sim, por que não? — de bom grado cederia a alma ao demônio. A questão é: o que pedir em troca? Imagina Mefistófeles, satisfeito por ter amealhado mais um, à espera apenas de que ele declinasse o preço. O velho pensa, pensa, e não chega a uma conclusão.
Dona Aranha: “Acho melhor ficar no que sou. Estou acostumadíssima.”
Dona Aranha: “Acho melhor ficar no que sou. Estou acostumadíssima.”
Pedir de volta a juventude? Mas por quê, se ela é insensata e cruel, ainda que a velhice seja intolerável? A imortalidade? Por quê, se a vida é insuportável, ainda que nos atormente a angústia da morte? O velho se dá conta de que nada tem a pedir e, ao imaginar o embaraço do Mefisto, diante de tão surpreendente situação, põe-se a rir, e tanto que a mulher acorda. “Rindo, a esta hora”, diz ela. “Ê homem de sorte.”
A fábula de Svevo é parecida com uma outra, de Monteiro Lobato, nesse grande livro que é Reinações de Narizinho. Dona Aranha, exímia costureira, faz o vestido de baile com o qual Narizinho vai se apresentar à corte do Príncipe Escamado. O vestido fica tão bonito que o espelho diante do qual a menina foi prová-lo arregala os olhos de espanto, e, à medida que são acrescentados os adereços, mais os arregala, e mais ainda, até que, de tanto se espantar, racha de alto a baixo.
Era o sinal que Dona Aranha esperava desde que tinha nascido e, de menina que era, fora transformada em aranha por uma fada má. Ao mesmo tempo, uma fada boa lhe dera aquele espelho, prometendo que, no dia em que fizesse o vestido mais lindo do mundo, deixaria de ser aranha para ser o que quisesse. E agora? Dona Aranha pensa, pensa. Transformar-se em quê? Princesa? Sereia? Pensa, pensa, e desiste. “Acho melhor ficar no que sou. Estou acostumadíssima.”
Tanto na fábula de Svevo quanto na de Lobato a magia é derrotada. Por isso são tão saborosas. É uma delícia ver seres superpoderosos, como Mefistófeles ou as fadas, reduzidos à impotência, diante de quem despreza os seus serviços.

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