domingo, 7 de julho de 2013

Te contei, não ? - Centenário de Jamelão

Faria 100 anos agora, se estivesse vivo. José Bispo Clementino dos Santos, ou "Jamelão", comemoraria o centenário nesse 12 de maio, 24 horas antes da celebração da abolição, uma semana depois do aniversário de Beth Carvalho. E nenhum dia seria mais propício, já que foi a voz negra mais conhecida de seu tempo, e baluarte de uma das comunidades negras mais respeitadas do Rio.

Morto em 2008, depois de um ano de tratamentos médicos na Casa da Saúde Pinheiro Machado, no Rio de Janeiro, Jamelão pareceu aceitar a morte sem ressentimentos: "Já vivi muito, estou no lucro. Quero é que o mundo acabe em melado para eu morrer doce", brincou, em entrevista à revista Isto É!. Pudera: deixou a vida aos 95 anos, mas com 93 ainda dava show de mais de três horas sem titubear. Velho, negro, de terno branco, chapéu e bengala, a imagem do cantor mais rabugento do samba só não trouxe risos por ter deixado, em sua saída, um vácuo que até hoje não foi preenchido.
Jamelão foi conhecido em vida por três motivos: primeiro, pela voz estrondosa que teve desde muito jovem, que usou para vender jornais (dos outros) e para vender CDs (dele); segundo, por ter sido o puxador de samba-enredo da GRES Estação Primeira de Mangueira por 54 anos, dos quais ajudou sua escola de samba a levar o primeiro lugar em 13; terceiro, por apresentar um mau-humor caricatural inabalável mesmo com seus fãs mais fervorosos. Reconhecido internacionalmente pelas interpretações de sambas-canção e sambas-enredo, seu falecimento causou um levante na sociedade carnavalesca: a Mangueira declarou luto oficial pela partida do ícone, e a Liga das Escolas de Samba do Rio, tão acostumada com sua presença na Sapucaí, se despediu com um cortejo fúnebre que lotou a avenida. Acabou virando nome do recuo de bateria dali. O enterro se deu no Cemitério de São Francisco Xavier, no humilde bairro do Caju.
Em pleno centenário, no entanto, é consternante a falta de comemorações em torno de sua figura. Do governo do Rio de Janeiro, pouco se ouviu. De sua comunidade, idem. Mesmo a Mangueira, que tanto ganhou com Jamelão sem ter nunca lhe dado um centavo, dedicou o enredo de seu desfile de 2013 para a cidade de Cuiabá, cujo governo repassou 5 milhões de reais aos cofres da casa. Nas festas de aniversário do intérprete (porque ele odiava ser chamado de "puxador"), o convidado de honra foi o esquecimento.
Vida de cantor
Jamelão, como muitos negros que encontraram sucesso no Rio de Janeiro, teve um início de vida humilde. Nascido no bairro de São Cristóvão, teve que trabalhar desde cedo para sustentar a família. Foi engraxate na infância, mas demorou pouco para que sua voz fosse descoberta: ainda jovem, tornou-se referência entre os jornaleiros da região. "Dizem que meu avô já tinha essa potência na voz, que vendia jornais gritando e isso foi o primeiro approach dele antes de virar cantor profissional", disse seu neto uma vez ao Jornal do Commercio.
O apelido, do fruto preto e duro, não se sabe de onde veio. O que se sabe, por outro lado, é que sua voz foi descoberta e apresentada para o sambista Lauro Santos, o Gradim, que o apresentou pessoalmente para a Mangueira. Com apenas 15 anos, Jamelão não pensava em cantar, mas viu nas garotas e no bloco de bateria da escola motivação suficiente para se juntar ao grupo. Enquanto estudava tamborim e cavaquinho, passou a participar das rodas de samba que aconteciam depois de cada desfile, e daí surgiu o contato com o canto.
Em 1949, assumiu o posto de puxador - não, intérprete - da Verde e Rosa pela primeira vez, influenciado fortemente pelo estilo do sambista Cyro Monteiro. Antes disso, porém, seu talento natural para o canto já ganhara visibilidade, em 1945, quando se tornou conhecido pelo programa Calouros em Desfile, da então Rádio Tupi RJ. Sua carreira trilhou atividades paralelas: enquanto dava voz à comunidade do Morro da Mangueira, por pura paixão, Jamelão ganhava o mundo com suas gravações pela Continental, primeiro, e depois pela Odeon, pela Companhia Brasileira de Discos e pela Philips. Com os prêmios regionais que acumulou, conseguiu projeção internacional, e nos anos 70 chegou a se apresentar no castelo de Coberville, na França, na festa de Assis Chateaubriand e do estilista francês Jacques Fath. Já consolidado como intérprete de samba, dividiu sua atenção entre o samba-canção, com atenção especial para as composições de Lupicinio Rodrigues, Dorival Caymi e Ary Barroso, e o samba-enredo, anualmente recriado pela Mangueira. Integrou a comissão de compositores da escola em 1968, e assim ocupou os próximos 35 de sua vida.
Nunca deixou de ser ativo. Em 2003, lançou o disco "Cada Vez Melhor", que receberia diversas premiações nos anos seguintes. Em 2005, em plenos 92 anos de idade, o músico serviu de modelo na 19ª São Paulo Fashion Week, para a grife Poko Pano, causando surpresa e clamor entre os presentes. Inalterado, porém, ficou seu humor azedo, como conta seu último empresário, Nilton Ribeiro: "Naquela idade, ele era duro, mas também muito carinhoso. O povo reclamava, mas chega uma hora na vida em que a gente não tem mais paciência. Teve um show que eu fiz com ele em Porto Alegre que foi bem assim: o Gonzaguinha quer fazer uma homenagem a ele ao vivo, mas ele não quis subir no palco. Ele sempre perguntava: 'E vai ter din-din nisso aí?'", conta, rindo.
Questões do novo samba
Em 2012, a Mangueira ficou em 7º lugar com "Vou festejar! Sou Cacique, Sou Mangueira", que fez em homenagem ao bloco Cacique de Ramos. Antes disso, homenagearam Nelson Cavaquinho e a MPB, respectivamente, sem qualquer tipo de patrocínio. Segundo o presidente da escola de samba, Ivo Meirelles, o enredo em homenagem a Cuiabá para 2013 evitou um "completo suicídio financeiro", já que o grupo tem dívida atual de pelo menos 12 milhões de reais. É notável, no entanto, que a Mangueira deixou passar também em 2008 o centenário de outro de seus avatares, o Cartola, para ser patrocinada pela prefeitura de Recife. O assunto daquele ano acabou sendo os cem anos de frevo.
"Acho que a própria Mangueira deveria ter feito o enredo sobre o Jamelão, mas hoje em dia as escolas são todas patrocinadas. Elas têm que buscar um tema que venda, a não ser que uma Caixa Econômica ou Petrobras banque esses projetos mais particulares", reflete Ribeiro - o "Niltão" -, que por mais de 20 anos esteve envolvido com Jamelão. Na realidade, a homenagem ao intérprete foi prestada pela Unidos de Jacarezinho, que abriu os desfiles do Grupo de Acesso e é apadrinhada da Mangueira.
Acusar a escola de desertar seu passado não é algo simples, há que se observar. Assim como a Mangueira, a Imperatriz Leopoldinense teve enredo comprado pelo estado do Pará, a Salgueiro foi contratada para falar sobre o mundo da fama e a Mocidade Independente de Padre Miguel dedicou-se ao maravilhar comercial do Rock In Rio. A Unidos da Tijuca fez uma parada em prol da Alemanha. A Beija-Flor de Nilópolis vendeu seu espaço para o tema mais específico: a raça de cavalos Mangalarga. Em geral, a máquina do alto Carnaval viu em 2012 uma quantidade imensa de patrocínios, mesmo sob a sombra dos polposos repasses que a RioTur faz às escolas.
"As escolas querem luxo, carros alegóricos grandiosos, e se esquecem de que o mais importante é emocionar o público", explicou recentemente à revista Época o escritor Alberto Mussa, estudioso dos sambas-enredo. Segundo ele, a evolução do Carnaval como entretenimento está dilapidando o envolvimento afetivo entre os compositores e o samba, já que progressivamente os custos e pressões de se manter no Grupo Especial força as escolas a buscarem fontes de renda mais generosas.
 
Se a discussão em torno desse assunto é espinhosa, porém, ninguém duvida que Jamelão mereceria um lugar de maior destaque na agenda cultural do Rio em 2013. Muitas de suas performances, como "O mundo encantado de Monteiro Lobato" (1967), "Yes, nós temos Braguinha" (1984), "Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm" (1988) e "Chico Buarque da Mangueira (1998)" se tornaram exemplos de excelência no mundo carnavalesco. Mesmo para os que não se apegam muito aos festejos de Carnaval, sua atuação no samba-canção ofereceu jóias como "Ela disse-me assim", de Lupinício Rodrigues, "Agora Sou Feliz", do Mestre Gato e "O Samba É Bom Assim", de Norival Reis e Helio Nascimento, todas obras que compuseram a estética musical de sua época.
O Movimento Negro, em específico, deveria lembrá- -lo pelo fantástico enredo de 1988, quando do centenário da Lei Áurea. O enredo da Mangueira, naquele ano, chamou-se "Cem Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?", e prenunciava a discussão que estava sendo trazida à tona pelas lideranças de então: a hipocrisia da "democracia racial" brasileira. Composto por Júlio Mattos, o enredo dizia: "Será que já raiou a liberdade ou se foi tudo ilusão? Será que a Lei áurea tão sonhada e há tanto tempo assinada, não foi o fim da escravidão? Hoje, dentro da realidade onde está a liberdade, onde está que ninguém viu? Moço não se esqueça que o negro também construiu as riquezas do nosso Brasil". Com esse tema, a escola foi vice- -campeã da Primeira Divisão (hoje, Grupo Especial).
O enredo "Puxador, não. Intérprete", da Jacarezinho, pode ter evitado que o aniversário passasse em silêncio, mas não é proporcional à importância de Jamelão. Se fosse em um ano anterior, teria sido celebrado na quarta divisão do carnaval carioca, antes da reorganização dos grupos. A família do sambista naturalmente lamenta a ausência de uma maior homenagem póstuma. Jamelão Netto vê certa malícia no ocorrido, também, e certa batalha de ego: se fossem falar sobre um personagem que fez muito pela Mangueira, o tema ofuscaria a imagem dos convidados. Provocador.
"AINDA VÃO DESCOBRIR O JAMELÃO COMO DESCOBRIRAM O TIM MAIA. NÃO LHE DÃO A DEVIDA IMPORTÂNCIA. ERA UM INTÉRPRETE COMPLETO."
A memória do carnaval
Foram 54 carnavais que a Mangueira confiou aos talentos de Jamelão. Sua voz se tornou o som do Carnaval do Rio, seu estilo o faz campeão e consagrou-o como personagem brasileiro insubstituível. "Ainda vão descobrir o Jamelão como descobriram o Tim Maia. Não lhe dão a devida importância. A voz dele, em plenos 90 anos de idade, mudou pouquíssimo, não tinha como confundir com a de outro cantor. Ele dominava o samba-enredo e o samba-canção, cantava tanto os ritmos tranquilos quanto os agitados. Era um intérprete completo", concluiu Niltão, em conversa com a Raça Brasil.
Mesmo que a Mangueira tenha seus motivos para escolher um samba-enredo mais pragmático, é preocupante ver a falta de cautela que tanto a escola quanto a Liga tiveram para com esse guardião da cultura do Carnaval. "O enredo sobre Jamelão nem sequer foi sondado", contou o carnavalesco Cid Carvalho ao Jornal do Commercio, pouco antes do desfile. Ele então classificou o episódio como "tempestade em copo d'água".
Em silêncio, o governo do Rio mostra, pela falta de comprometimento, que compartilha desse entendimento. Não é a regra, diga-se: em tempos recentes, tivemos grandes eventos para o centenário da morte de Machado de Assis, do nascimento de Guimarães Rosa, Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues. Que o país deixe passar em silêncio a participação cultural de Jamelão, assim como deixou passar a de Cartola, é motivo suficiente para questionar os critérios pelos quais nós, como povo, lembramos de nós mesmos. Afinal, sem o reconhecimento que essas figuras merecem, daqui há pouco o que sobrará será apenas o silêncio.

Revista Raça Brasil

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