Um crítico que analisa há décadas a relação entre arte moderna e política, o britânico T.J. Clark dedicará sua conferência de hoje na Flip, às 19h30m, a uma das obras que marcaram a interseção entre esses campos no século XX: “Guernica”, de Pablo Picasso. Um dos temas de seu livro mais recente, “Picasso and truth” (“Picasso e verdade”, inédito no Brasil), o painel em preto e branco, de 3,5m de altura por 7,8m de largura, foi criado em 1937 para o pavilhão da República Espanhola na Exposição Internacional de Paris, como resposta à destruição da pequena cidade de mesmo nome durante a guerra civil na Espanha, pelas forças aéreas nazistas, em apoio ao general Francisco Franco. Em entrevista ao GLOBO, Clark diz que, mais do que “a representação de uma cidade bombardeada”, “Guernica” permanece até hoje como “emblema da desintegração da ordem social”.
“Guernica” é um dos grandes exemplos da interseção entre arte e política no século XX. Que visão política Picasso expressa nessa obra? Picasso faz uma indagação política ao mesmo tempo simples e complexa. Para entendê-la, precisamos nos reportar ao momento da criação da obra. O ataque a Guernica foi um dos primeiros bombardeios contra populações civis e um dos primeiros a devastar o centro de uma cidade. Picasso vivia em Paris, e há registros em seus diários de como ficou horrorizado com aquilo. Então, o que ele procura fazer em “Guernica” é dar forma à experiência dilacerante do aniquilamento em massa instantâneo, da destruição absoluta de um mundo. A questão política que a pintura coloca é: precisamos nos lembrar para sempre que os Estados são capazes de fazer isso. Clausewitz (general prussiano e teórico) dizia que “a guerra é a continuação da política por outros meios”; Picasso mostra a obscenidade desse raciocínio.
Em “Picasso and truth”, você analisa como o pintor transformou o próprio estilo para abordar esse tema, passando dos espaços interiores, predominantes em suas primeiras obras-primas, ao “mundo exterior” de “Guernica”. Como se deu essa trajetória?
Costumamos pensar no cubismo como um momento da história da arte em que novas técnicas formais expressaram a desintegração da experiência no mundo moderno. Mas meu argumento é que o cubismo tem como premissa a concepção de que o verdadeiro mundo humano é o da casa, da sala, do espaço interior. Em várias obras de Picasso, podemos entender que os seres humanos não estão completos se não têm um espaço íntimo, uma zona de pertencimento. Por isso, acredito que foi extraordinariamente difícil para ele pensar na pintura em confronto com um mundo em que essas coordenadas básicas do ser humano estavam sendo destroçadas. Mais do que a representação de uma cidade bombardeada, “Guernica” é o emblema da desintegração da ordem social. E ali vemos um pintor que era profundamente comprometido com o espaço interior — a sala, a mesa, o violão, a forma feminina — refletindo sobre a vida humana em um momento em que essa ordem está ameaçada.
No livro você escreve que o dilema de Picasso era como representar “o colapso de toda uma forma de vida” sem se deixar cair em “um espaço de ruínas, um espaço nulo”. Qual é a resposta de Picasso para esse dilema? Para ele, o que a arte podia fazer diante da catástrofe?
Isso nos coloca diante de um problema central: “Guernica” sempre teve seus críticos. Eles argumentam que Picasso não estava acostumado a compor uma cena daquelas, em escala pública, que não estava contida em uma sala. A crítica mais comum é que “Guernica” é uma colcha de retalhos, costurada por meio de triangulações óbvias, numa geometria em preto e branco muito pesada. Não concordo. Meu argumento é que, sim, foi difícil para ele encontrar uma forma para essa pintura, mas acredito que no fim das contas conseguiu. Picasso fez com que os corpos aparecessem de pé ou caindo em relação a uma espécie de materialização do nível do solo. Ele conseguiu dar peso e sustentação a essas figuras. Pense naquele “episódio” de “Guernica” em que uma mulher cai de um prédio em chamas, como se em direção ao nada. É sobre o fim de um mundo bípede, mas a mulher ainda luta para se manter de pé.
A criação de “Guernica” foi fartamente documentada, nos esboços de Picasso e em uma série de fotografias de Dora Maar, por exemplo. O que esses registros revelam sobre o processo criativo de Picasso?
Muitas coisas, e a principal delas talvez seja a imensa distância entre a primeira ideia e a obra concluída. No começo, Picasso não sabia como fazer uma pintura sobre o tema que queria abordar. O primeiro estudo já é muito bonito, com um desenho em que as linhas têm uma consistência muito própria. Mas a partir do quarto ou quinto tratamento a consistência se perde, e o que vemos é Picasso em busca de uma nova forma de expressão.
O Globo
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