sábado, 6 de julho de 2013

Te Contei, não ? - Brasil em chamas

                
 
O governo precisa ouvir a voz das ruas, reagir às manifestações – e recolocar o país no rumo
 
Que aconteceu com o Brasil? Em 2010, no auge da euforia econômica, tudo parecia fácil. Os governantes prometiam crescimento chinês e infraestrutura de Primeiro Mundo. Prometiam combate à corrupção, educação e saúde de qualidade e a redução da violência. Nas contas mal somadas das autoridades, o Brasil chegaria a junho de 2013 celebrando seu recém-conquistado estado de riqueza e seus novos estádios, onde a redonda Cafusa balançaria as redes da Copa das Confederações – um saboroso aperitivo para o Mundial de 2014.
Que diferença três anos podem fazer. Em alguma bifurcação da estrada em que viajava, o Brasil pegou o caminho errado. O asfalto acabou, a buraqueira se espalhou, e o mato tomou conta do acostamento. Muito combustível foi desperdiçado, e o carro sofreu os danos. Em vez de seguir caminho rumo ao paraíso anunciado, o Brasil de 2013, é palco da mais ampla e repentina revolta popular de sua história.
Na noite da última quinta-feira, dia 20, depois de duas semanas de manifestações sucessivas nas ruas de dezenas de cidades, por volta de 1,2 milhão de brasileiros ocuparam as ruas do país num protesto que misturou euforia, emoção, violência – e, sobretudo, perplexidade. Centenas de manifestantes tentaram invadir o Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores e uma das mais conhecidas obras de Oscar Niemeyer. Quebraram janelas, tentaram incendiar o prédio e acabaram repelidos pela força policial. Diante do Congresso Nacional, milhares de pessoas eram afastadas pela polícia e suas bombas de gás lacrimogêneo. Em torno do Palácio do Planalto, a cena mais simbólica: numa ironia da história, a presidente da República – uma ex-guerrilheira, perseguida, presa e torturada pela ditadura militar, depois eleita pelo Partido dos Trabalhadores, talvez a maior máquina de mobilização da história brasileira – teve de ser protegida, por tropas e pela cavalaria do Exército, de um gigantesco protesto popular.
Longe dali, o centro do Rio de Janeiro era transformado em praça de guerra, depois que 300 mil pessoas tomaram as ruas numa manifestação que se propunha uma festa da democracia. Confrontos com a polícia e cenas de vandalismo dificultavam a visão de quem tentava identificar onde acabavam os protestos pacíficos e onde começavam as ações criminosas. Em São Paulo, por contraste, cerca de 100 mil pessoas desfilaram de modo pacífico, sem incidentes graves, pela Avenida Paulista, o coração da metrópole – cujo acesso o governo tentava, no início das passeatas, bloquear a todo custo.
São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Goiânia, Florianópolis, Curitiba, Vitória, Palmas… até Muzambinho no interior de Minas Gerais. Na semana passada, cada capital, cada cidade ofereceu sua parcela de indignação. O Brasil nunca vira algo parecido, capaz de empolgar, emocionar e assustar quem passava pelas ruas ou acompanhava os acontecimentos de casa. As marchas que inicialmente pediam a revogação do aumento nas tarifas de transporte público, particularmente em São Paulo e Rio de Janeiro, fizeram brotar todo tipo de insatisfação e revolta com o Brasil atual. “Não são só 20 centavos”, diziam muitos manifestantes. O mesmo Movimento Passe Livre (MPL), que lançou a campanha de rua contra o reajuste de R$ 0,20 nas passagens, tentara fazer o mesmo em São Paulo no início de 2011. O então prefeito, Gilberto Kassab (PSD), aumentara a tarifa de R$ 2,70 para R$ 3, uma alta de 10%, superior aos quase 7% adotados por seu sucessor, Fernando Haddad (PT). O MPL foi ao centro da cidade, e os paulistanos ignoraram. O Brasil ainda se sentia em “um momento excepcional”, nas palavras de Luiz Inácio Lula da Silva em seus tempos de presidente. Nada mais distante do sentimento expressado hoje nas ruas.
As manifestações em Brasília e no Rio de Janeiro foram alguns dos momentos mais tensos de uma semana de ira. Os manifestantes mostravam não apenas decepção ou questionamento. Era raiva. As razões, exibidas em cartazes cuidadosamente elaborados, eram muitas, variadas, sem muitas tintas ideológicas ou cores partidárias. A inflação voltou a preocupar, sem que o governo demonstrasse compreender a gravidade do problema. O combate à corrupção não levou a punições significativas – e os réus condenados no escândalo do mensalão ainda manobram para escapar da cadeia. A opinião pública vê incrédula a ameaça da PEC 37, arquitetada por congressistas para tirar do Ministério Público seu poder de investigação. A Copa do Mundo, com mais de R$ 30 bilhões marcados em sua etiqueta, deveria trazer transformações na infraestrutura urbana – e até agora só ofereceu estádios. Caros e atrasados, emergem como palácios nababescos cercados por mares de deficiências e injustiças. As negociatas no Congresso Nacional, que garantem cargos a legisladores acusados de corrupção ou de passado incompatível com sua posição servem de tapa na cara daqueles que há anos exigem ética na política. O descaso com a segurança pública levou muitos a perder a confiança na disposição das autoridades de protegê-los. Reivindicação concreta nas ruas só havia uma, lançada pelo MPL: a revogação do aumento da tarifa de ônibus das capitais (eles venceram, com a capitulação em cascata dos governos municipais e estaduais). Motivos para sentir raiva do estado da nação eram incontáveis, apesar das melhorias econômicas e sociais dos últimos anos. Tal contradição pode ser explicada por uma única palavra: frustração. O país prometido era um. O país entregue é outro.
ÉPOCA teve acesso exclusivo a uma pesquisa sobre os protestos, feita pelo Ibope sob encomenda da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). Ela ouviu 1.008 pessoas em 79 municípios de todos os Estados brasileiros, nos dias 19 e 20. O levantamento revela, apesar de tudo, uma alta taxa de satisfação do brasileiro. Cerca de 60% se dizem satisfeitos com a vida atual, contra 29% que se declaram insatisfeitos – a margem de erro é de 3 pontos percentuais. O índice de satisfação é até maior entre os mais jovens (74%) que entre os mais velhos (65%). Isso não implica, porém, concordar com o estado geral das coisas. “O desempenho da economia brasileira na última década satisfez muitas das necessidades domésticas da população, mas tudo isso ocorreu da porta de casa para dentro”, diz Cláudio Couto, cientista político, professor da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo. “As passeatas mostraram que a população quer mais, quer melhorias da porta de casa para fora.” Para isso, milhões se mostraram dispostos a marchar, em números cada vez mais impressionantes.
“Amanhã será maior!”, dizia um dos últimos manifestantes no gramado do Congresso Nacional, após o protesto da noite da segunda-feira, dia 17. Três dias depois, na quinta-feira, a multidão que se postou diante do Legislativo federal às 17h30 foi estimada pela Polícia Militar em 30 mil pessoas, mais que o dobro de segunda. De início tranquilo, o protesto tinha quase o ambiente de uma grande festa popular, com inúmeras expressões de patriotismo. Entre os jovens, a maioria, uma ou outra cabeça branca, como a de Paulo Parucker, de 49 anos, servidor da Câmara Legislativa do Distrito Federal. “Vi causas muito lindas misturadas com intenções quase golpistas. No fim, eles só querem ser ouvidos”, diz Parucker. “Tem um sentimento estranho no ar, uma raiva”. A raiva venceu a tranquilidade, quando manifestantes exaltados lançaram pequenas bombas caseiras contra a polícia, que retribuiu com gás lacrimogêneo. Na linha de frente do confronto estava Guilherme, de 20 anos. Morador de São Sebastião, cidade pobre do Distrito Federal, ele estava determinado a invadir o Congresso, Porque acha que só lá dentro o povo será ouvido. Lançou pedras com toda a força que tinha. “Sinto muita raiva, porque apanho da PM quase todo dia. Não sou bandido, só fumo meu baseado. Você acha que eu, vou vir pra cá e ficar quieto, na paz? Eu tô cansado.” A violência se impôs por volta das 20 horas. Manifestantes lançavam pedras, pedaços de pau, garrafas d’água e pequenas bombas contra os policiais, que respondiam. Houve correria. Centenas de jovens dirigiram-se ao Itamaraty e ocuparam os dois principais acessos do edifício. Cerca de 20 deles usaram todo tipo de objeto para quebrar 25 vidraças. A revolta de 2013 atacava pela primeira vez um símbolo do Estado brasileiro.
Na mesma noite, no Rio de Janeiro, o palco dos combates foi a área em torno da prefeitura. A reportagem de ÉPOCA presenciou a correria de pessoas fugindo de gás lacrimogêneo e tiros de balas de borracha. Jovens que protestavam pacificamente viam-se misturados a vândalos. Enquanto parte destes enfrentava a PM, outros se afastavam violentamente quebrando placas e grades de ferro usadas para separar o trânsito. Quanto mais os manifestantes pacíficos corriam, mais a polícia avançava, sobre cavalos, sem distinção de seus alvos. Levada pela multidão, a equipe de ÉPOCA foi parar a 2 quilômetros da prefeitura. Ao final da noite, o Terreirão ao Samba, uma área de diversão com bares e restaurantes perto da Marquês de Sapucaí, foi alvo de vandalismo. Barricadas em chamas ocupavam a Avenida Presidente Vargas. O prefeito Eduardo Paes (PMDB) fez um balanço da destruição: 98 semáforos danificados, 31 placas de trânsito e 46 com nomes de ruas foram destruídas, 62 abrigos de ônibus foram lançados ao chão e 340 lixeiras arrancadas. Com medo de novos atos de vandalismo na sexta-feira, grande parte do comércio fechou as portas na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. O secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, afirmou que possíveis excessos da polícia serão investigados e, se necessário, punidos. Os arredores dos estádios onde ocorriam jogos da Copa das Confederações se tornaram palco de confrontos entre manifestantes e a polícia, o mais grave próximo à Arena Fonte Nova, em Salvador, na quinta-feira, antes do jogo Uruguai x Nigéria. Veículos da Fifa chegaram a ser apedrejados. A pesquisa CNT /Ibope mostra que a maioria da população condena a violência dos manifestantes e da polícia. E, apesar disso, 75% apoiam os protestos. Cerca de 5% dos entrevistados dizem ter participado deles – e 35% dos que não foram afirmam que participariam.
O maior desafio que as manifestações apresentam para o Brasil é a rejeição às instituições e à política convencional. O MPL defende uma espécie de apartidarismo niilista, segundo o qual “políticos e empresários” são forças nocivas a uma cidade. Os protestos absorveram esse espírito. O brasileiro que foi à rua protestar não se reconhece nos representantes eleitos para representá-lo. Nem nas instituições ou nos partidos organizados. “Há um divórcio completo entre partidos e sociedade’: afirma o filósofo Denis Rosenfield, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Sem partido! Sem partido!”, gritavam manifestantes pelo Brasil sempre que a bandeira de alguma legenda surgia na multidão. Até grupos políticos de extrema esquerda, cujo passado os aproximava da luta e das bandeiras do MPL, como o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), foram calados e expulsos. A rejeição mais eloquente se voltou contra o partido do governo, o PT. Acostumado a encabeçar manifestações de rua em seus 30 anos de existência, o PT tentou se unir à passeata festiva da quinta- feira na Avenida Paulista, depois da suspensão do aumento. Os petistas acabaram hostilizados. Suas famosas bandeiras vermelhas com a estrela branca foram rasgadas. A fracassada ideia de adesão tardia ao movimento partiu do presidente do partido, Rui Falcão, militante de esquerda, preso com Dilma Rousseff nos anos de chumbo da ditadura militar. A um interlocutor, Falcão desabafou: “Minha geração foi às ruas contra a ditadura. Esse pessoal está nas ruas contra a democracia”. Um estudo do instituto Data Popular, divulgado na sexta-feira, dia 21, ouviu 1.502 brasileiros de 18 a 30 anos, em 100 cidades brasileiras, no mês passado. Segundo a pesquisa, 35% dos jovens não confiam na Presidência da República, 59% não confiam na Justiça e 75% não confiam nos parlamentares. Mais preocupante, ainda: 21% disseram não acreditar que o poder do voto possa mudar o Brasil.
O comportamento hostil aos partidos políticos não é casual. O divorcio vem sendo estabelecido ao longo dos últimos anos, entre as instituições do Estado e a maior parte da população do país. “O Estado brasileiro possui controle quase absoluto da política”, diz Roberto Romano, filósofo e professor da Universidade de Campinas (Unicamp). “Há uma multiplicação de partidos políticos sem base, sem compromissos com a sociedade e sem solidez. Eles são apenas instrumentos auxiliares do Poder Executivo federal.”
O Brasil da raiva vive um momento delicado de sua história, em que os instrumentos da democracia formal para gerenciar o país, realizar obras e manter a ordem se veem questionados e atacados pela descrença em sua eficácia. As insatisfações são tantas – e a maioria tão justas – que quase não há espaço para ações propositivas. A própria bandeira do MPL, a tarifa zero para o transporte público, é mais contra algo – a cobrança de tarifa – que a favor. Como o movimento que convulsionou o país carece de líderes, estrutura, propostas concretas ou compromissos estabelecidos, dele não se podem esperar caminhos. A atitude de indignação pode até ser positiva – mas o niilismo dirigido aos partidos, às instituições e à própria democracia representativa não é.
O Brasil de junho de 2013 está diante de dois caminhos possíveis. No primeiro, a continuação de protestos diários, quase invariavelmente acabando em violência e depredação, sem respostas propositivas do governo, é um risco que o país não pode correr. A perda completa da ordem representa grave ameaça às instituições, à segurança da população e à democracia. Um segundo caminho é possível, necessário – e até urgente. Exige que o governo federal esqueça suas maquinações eleitorais e se mexa para combater os mais graves males apontados pela população: corrupção, inflação, criminalidade e a falta de recursos para saúde e educação. Alianças políticas que favorecem personagens repudiados pela população devem ser abandonadas. A teimosa visão econômica que afasta o investimento privado e impede o crescimento deve ser abandonada. Apesar da longa lista de reivindicações, os protestos pelo Brasil pediram basicamente responsabilidade, ética, ação e transparência dos políticos – principalmente daquela que ocupa o ponto mais alto da cadeia decisória. “Sou a presidente de todos os brasileiros”, afirmou a presidente Dilma Rousseff em pronunciamento, à nação na última sexta-feira. Se quiser, ficar do lado certo da história, ela terá de atender às demandas de todos eles. “Dos que se manifestam e dos que não se manifestam”. Sem demora.

Revista Época

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