A repulsa dos manifestantes ao poder desnorteia os políticos e empareda a democracia brasileira
Na quarta-feira, às 16h55, era possível enxergar toda a amplitude do plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília. Era possível ver as cadeiras, contar os microfones à disposição e caminhar pelos corredores laterais sem pedir licença. O deputado Amauri Teixeira (PT-BA) chegou rapidamente à saída. O som se propagava, a ponto de as conversas dos espectadores serem ouvidas pelos deputados em seus assentos. Normalmente, quarta-feira é o dia de trabalho mais intenso no Congresso. É quando ocorrem as sessões mais longas, apinhadas de parlamentares, com discursos que se sucedem, discussões e corredores lotados. Na pacata tarde da quarta-feira passada, apenas 18 parlamentares - quatro na mesa e outros 14 em seus lugares - ocupavam o espaço - apesar de o painel registrar a presença de 380. No espaço contíguo, o cafezinho, outros poucos deputados assistiam à vitória do Brasil sobre o México, numa televisão de 42 polegadas. Horas antes, os parlamentares chegaram até a discutir algo no plenário. Debateram a possibilidade de criar uma comissão para apurar uma acusação de que a prefeitura de Santa Cruz do Arari, no Pará, exterminava cães. "Nos expomos ao ridículo quando o Brasil vive um quadro de convulsão", disse o deputado Ricardo Berzoini (PT-SP). No dia seguinte, o cenário se repetiu. No plenário do Senado, apenas a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e o senador Fernando Collor (PTB-AL) ocupavam o espaço. Collor prefere ficar distante de manifestações.
Enquanto isso, em alguns lugares do Brasil, centenas de milhares de pessoas, a maioria jovens, participavam - e planejavam - de protestos em que repudiavam o modo como os políticos exercem sua atividade. Um dia antes, alguns milhares desses manifestantes haviam chegado às portas do Congresso - igualmente vazio naquele momento. Parte do grupo desceu a rua e parou à frente da chapelaria, como é conhecida a portaria principal, de vidro, por onde entram e saem os parlamentares. Equipada com capacetes, escudos e cassetetes, a Polícia Legislativa, que cuida da segurança do Congresso, fez uma barreira para impedir o acesso dos manifestantes. "Queremos falar com o presidente!", gritou um dos manifestantes à frente do grupo. "Qual o nome do presidente?", disse um dos poucos seguranças vestidos de terno e gravata. Os manifestantes não souberam responder - e desistiram da empreitada. A 1 quilômetro dali, de camisa azul e boné, Matheus Ramos de Ávila, estudante de administração de 19 anos e estagiário no Ministério da Justiça, se aproximou de dois outros manifestantes e afirmou que era preciso acrescentar uma pauta econômica: a demissão do presidente do Banco Central e o fim da política econômica "ex-pansionista brasileira". "A gota d"água da indignação é a inflação!", disse Matheus. Ele carregava nas mãos um papelão em branco. Queria escrever uma frase pedindo a demissão do presidente do Banco Central, mas não sabia seu nome. Foi informado que ele se chama Alexandre Tombini. Minutos depois, Matheus reapareceu com o papelão e os dizeres, em vermelho: "Fora, Timbone!".
Os manifestantes que incendiaram diversas cidades nas últimas duas semanas pouco sabem sobre a política institucional ou a administração do governo. Mas mostraram sistematicamente seu desapreço por ela. Repudiaram a presença de qualquer símbolo de partidos políticos em suas manifestações. Há um fosso entre os manifestantes e os políticos que participam do sistema partidário do regime democrático no Brasil. Na semana em que a maioria da população ouviu, atônita, os gritos dos manifestantes, o Congresso se calou. A maioria dos parlamentares foi embora rápido de Brasília, de olho nas festas de São João em seus Estados. O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, estava em visita oficial à Rússia, para conhecer um Parlamento que obedece às ordens do presidente Vladimir Putin. A maioria dos parlamentares não quis falar sobre as manifestações. O presidente do Senado, Renan Calheiros, deu apenas uma declaração protocolar. Há 20 anos, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) se tornou o líder de manifestações semelhantes, que terminaram no impeachment do presidente Collor. Na semana passada, mesmo procurado insistentemente, Lindbergh preferiu se calar. Até políticos mais jovens, menos tradicionais, preferiram o silêncio. A deputada Manuela D"Ávila (PCdoB-RS) chegou à política pelo movimento estudantil. Manuela preferiu não participar de nenhuma manifestação nem emitir opiniões. "Temos de ter humildade de ouvi-los por mais tempo", afirma Manuela. "Vamos levar algum tempo para depurar tudo isso. Prefiro só ouvir por enquanto. É o momento deles."
Os protestos criados por eles são um marco histórico. São os primeiros feitos no Brasil, desde a década de 1980, que não contam com a presença ou a liderança do PT. Desde as greves no ABC paulista, que ajudaram a derrubar a ditadura militar, até a campanha pelo impeachment de Fernando Collor, o PT foi o protagonista. Após dez anos de poder, é a primeira vez que um movimento de protesto em escala nacional é feito não só, mas contra o PT. É o fim do ciclo do PT identificado como partido dos movimentos populares, com anseios de mudança e oposição a mazelas na política.
Não há surpresa na opinião dos manifestantes nem no comportamento dos políticos. Há anos os brasileiros estão descontentes com a política e os rumos que os políticos deram à democracia. Entre os habitantes dos países da América Latina, os brasileiros estão entre os que nutrem menos apreço por partidos ou pelo Congresso - dois pilares essenciais para a manutenção da democracia -, segundo dados do Latinobarômetro, organização que faz estudos de opinião pública. Em 2011, 57% dos brasileiros responderam que seria possível viver sem partidos políticos. Uma pesquisa feita pelo Datafolha na semana passada mostra que, em dez anos, caiu consideravelmente o prestígio de partidos políticos, do Congresso e da Presidência da República. O descontentamento aparece nas entrelinhas de pesquisas em período eleitoral. Os entrevistados afirmam constantemente que a política é feita sempre pelas mesmas pessoas e que gostariam de ver "caras novas". Os jovens que formaram a massa das manifestações foram criados num ambiente em que a política partidária não é aberta às pessoas comuns. Há quase menos de duas décadas, os partidos políticos se transformaram em máquinas de disputar eleições, buscar cargos e gerir recursos do Fundo Partidário e de doações para campanhas eleitorais. "Há tempos os movimentos populares querem falar", afirma o cientista político Fernando Abrucio, da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. "Se os partidos dessem espaço para novas pessoas e discussões, isso poderia ser feito de forma organizada. Mas os partidos estão fechados."
Historicamente, o descontentamento que não encontrava eco nos partidos políticos desaguava na formação de movimentos sociais. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nasceu em 1984, no Rio Grande do Sul, para lutar pela reforma agrária. Por anos, com a ajuda do Partido dos Trabalhadores, esses movimentos pressionaram a política formal no Brasil. A década do PT no exercício do poder alterou a vida desses movimentos sociais. A ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência levou ao aliciamento desses movimentos. Organizações ligadas ao MST serviram de biombo para o movimento receber dinheiro público. Os sindicatos, um foco de protestos pelo qual o próprio Lula chegou à política, abandonaram as greves em troca de recursos públicos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da ausência de fiscalização sobre seus gastos. A União Nacional dos Estudantes (UNE), histórico pilar de manifestações desde a década de 1940, apoia o governo. Desde 2003, a UNE recebeu mais de R$ 15 milhões por convênios com o governo federal. Em 2010, recebeu ainda uma indenização de R$ 30 milhões da União. A UNE não foi vista nas manifestações da semana passada. Sua presidente, Virgínia Barros, eleita há um mês, afirma que a entidade estava lá. "A UNE esteve em todas as manifestações. No Recife, fomos nós que lideramos o movimento pela redução de tarifas do transporte público", diz. "A UNE está muito entusiasmada com as manifestações." Em Brasília, manifestantes hostilizaram os poucos militantes que tentaram agitar uma bandeira da UNE durante o protesto da quinta-feira.
O governo Dilma significou um rompimento entre governo e movimentos sociais. A presidente Dilma Rousseff é distante deles, hoje pouco ouvidos no Palácio do Planalto. Sem força, movimentos com estruturas antigas foram suplantados por jovens sem lideranças definidas, mas capazes de se organizar por redes sociais. "Esses jovens perceberam que os partidos políticos se aproximaram do movimento estudantil apenas para amealhar quadros e recursos", afirma o filósofo Roberto Romano. "É natural que estudantes mais politizados tenham ojeriza de partidos."
O PT e o governo foram pegos de surpresa por essa nova situação. Na primeira semana de protestos, o governo federal se manteve distante. A presidente Dilma Rousseff não tocou no assunto. De maneira protocolar, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, foi encarregado de falar. Após a eclosão de outros focos do movimento pelo Brasil, no início da semana Dilma foi a São Paulo se reunir com o ex-presidente Lula e o prefeito Fernando Haddad. Encontrou-se também com o marqueteiro João Santana, responsável por avaliar os riscos das ações do governo ao projeto de reeleição de Dilma em 2014. Só depois disso Dilma se manifestou. Na terça-feira, em evento no Palácio do Planalto, ela fez um discurso de 17 minutos para falar do novo marco regulatório do setor de mineração. Dedicou as 497 palavras finais das 1.732 do discurso para falar nos protestos. "Os que foram ontem às ruas deram uma mensagem direta ao conjunto da sociedade, sobretudo aos governantes de todas as instâncias", disse Dilma. "Essa mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores escolas, melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à participação." Dilma não reconheceu nenhum erro do governo que pudesse ter levado à eclosão do movimento. Preferiu encerrar seu pronunciamento com uma frase moldada ao estilo de João Santana para a campanha: "Quero aqui garantir a vocês que o meu governo também quer mais, e que vamos conseguir mais para nosso país e para nosso povo".
O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e o governador do Estado, Geraldo Alckmin, não puderam usar a tática de se esconder dos protestos. Obrigados a enfrentar os manifestantes desde o início, vacilaram e erraram num balé com direito a idas, vindas, voltas e piruetas de dar inveja aos mais exímios dançarinos. Haddad se recusou a receber os manifestantes no início. Alckmin não condenou a ação violenta da Polícia Militar. Deveriam ter seguido os passos de um outro colega no Executivo. Durante seu governo, o então presidente Lula convocou ministros para uma reunião com fazendeiros e militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. As discussões se acirraram e demoraram. "Presidente, mas que decisão o senhor espera tomar daqui?", disse um ministro. "E quem disse que quero decidir alguma coisa?", afirmou Lula. A política é o campo da negociação. Não é preciso, necessariamente, decidir algo ou fazer a vontade do outro - mas é essencial dar espaço para que ele se manifeste e seja ouvido. Alckmin e Haddad aprenderam isso da pior forma. Foram obrigados a recuar no aumento da tarifa. Numa entrevista conjunta, contrariados, avisaram que terão de cortar investimentos para bancar a arrecadação menor.
As manifestações das últimas semanas podem fazer bem à democracia. Na semana passada, parlamentares perceberam que o clima não é dos melhores e adiaram a votação de alguns projetos delicados ou que poderiam gerar insatisfação popular. Um deles, que pode extinguir os poderes de investigação ao Ministério Público - instituição que tem sistematicamente produzido denúncias sobre a corrupção de políticos -, ficou para o segundo semestre. Um grupo de trabalho de deputados estudava alterações para amolecer os critérios da Lei Ficha Limpa, aprovada em 2010 por iniciativa popular. As mudanças tornariam mais fácil aos políticos escapar de punições e ficar livres para disputar eleições. Os parlamentares acharam melhor esquecer esse assunto até o segundo semestre. O clima não permite afrontas.
Obrigar os políticos a mudar seu comportamento pode ser uma das boas consequências do movimento. Não é apenas por meio do voto, a cada dois anos, que os eleitores influem na política. Pressionar governos contra medidas, como aumentos da tarifa de ônibus, ou em busca de serviços públicos mais decentes é um direito - e até obrigação - dos cidadãos.
Fazer isso sem permitir que políticos oportunistas se aproveitem do esforço popular é uma vitória adicional. O perigo é levar às últimas consequências a ojeriza que parte dos manifestantes nutre pela política em geral. Não é possível prescindir do exercício da política via partidos, Parlamento e eleições para exercer a democracia. Em mais de dois mil anos, a humanidade não encontrou uma forma mais eficaz de organizar a vida social do que a democracia. "A democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que já foram tentadas", dizia o primeiro-ministro inglês Winston Churchill. A ironia de Churchill é cabível porque a democracia permite não só a diversidade de opiniões, mas de propósitos. E extremamente difícil conduzir o regime democrático. O risco de atacar partidos ou o Congresso Nacional é atacar a própria democracia. A alternativa a isso é muito pior do que as mazelas que se aproveitam da liberdade. As ditaduras são ineficientes, injustas e multiplicam as iniquidades. Não há caminho fácil.
Na quarta-feira, às 16h55, era possível enxergar toda a amplitude do plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília. Era possível ver as cadeiras, contar os microfones à disposição e caminhar pelos corredores laterais sem pedir licença. O deputado Amauri Teixeira (PT-BA) chegou rapidamente à saída. O som se propagava, a ponto de as conversas dos espectadores serem ouvidas pelos deputados em seus assentos. Normalmente, quarta-feira é o dia de trabalho mais intenso no Congresso. É quando ocorrem as sessões mais longas, apinhadas de parlamentares, com discursos que se sucedem, discussões e corredores lotados. Na pacata tarde da quarta-feira passada, apenas 18 parlamentares - quatro na mesa e outros 14 em seus lugares - ocupavam o espaço - apesar de o painel registrar a presença de 380. No espaço contíguo, o cafezinho, outros poucos deputados assistiam à vitória do Brasil sobre o México, numa televisão de 42 polegadas. Horas antes, os parlamentares chegaram até a discutir algo no plenário. Debateram a possibilidade de criar uma comissão para apurar uma acusação de que a prefeitura de Santa Cruz do Arari, no Pará, exterminava cães. "Nos expomos ao ridículo quando o Brasil vive um quadro de convulsão", disse o deputado Ricardo Berzoini (PT-SP). No dia seguinte, o cenário se repetiu. No plenário do Senado, apenas a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e o senador Fernando Collor (PTB-AL) ocupavam o espaço. Collor prefere ficar distante de manifestações.
Enquanto isso, em alguns lugares do Brasil, centenas de milhares de pessoas, a maioria jovens, participavam - e planejavam - de protestos em que repudiavam o modo como os políticos exercem sua atividade. Um dia antes, alguns milhares desses manifestantes haviam chegado às portas do Congresso - igualmente vazio naquele momento. Parte do grupo desceu a rua e parou à frente da chapelaria, como é conhecida a portaria principal, de vidro, por onde entram e saem os parlamentares. Equipada com capacetes, escudos e cassetetes, a Polícia Legislativa, que cuida da segurança do Congresso, fez uma barreira para impedir o acesso dos manifestantes. "Queremos falar com o presidente!", gritou um dos manifestantes à frente do grupo. "Qual o nome do presidente?", disse um dos poucos seguranças vestidos de terno e gravata. Os manifestantes não souberam responder - e desistiram da empreitada. A 1 quilômetro dali, de camisa azul e boné, Matheus Ramos de Ávila, estudante de administração de 19 anos e estagiário no Ministério da Justiça, se aproximou de dois outros manifestantes e afirmou que era preciso acrescentar uma pauta econômica: a demissão do presidente do Banco Central e o fim da política econômica "ex-pansionista brasileira". "A gota d"água da indignação é a inflação!", disse Matheus. Ele carregava nas mãos um papelão em branco. Queria escrever uma frase pedindo a demissão do presidente do Banco Central, mas não sabia seu nome. Foi informado que ele se chama Alexandre Tombini. Minutos depois, Matheus reapareceu com o papelão e os dizeres, em vermelho: "Fora, Timbone!".
Os manifestantes que incendiaram diversas cidades nas últimas duas semanas pouco sabem sobre a política institucional ou a administração do governo. Mas mostraram sistematicamente seu desapreço por ela. Repudiaram a presença de qualquer símbolo de partidos políticos em suas manifestações. Há um fosso entre os manifestantes e os políticos que participam do sistema partidário do regime democrático no Brasil. Na semana em que a maioria da população ouviu, atônita, os gritos dos manifestantes, o Congresso se calou. A maioria dos parlamentares foi embora rápido de Brasília, de olho nas festas de São João em seus Estados. O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, estava em visita oficial à Rússia, para conhecer um Parlamento que obedece às ordens do presidente Vladimir Putin. A maioria dos parlamentares não quis falar sobre as manifestações. O presidente do Senado, Renan Calheiros, deu apenas uma declaração protocolar. Há 20 anos, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) se tornou o líder de manifestações semelhantes, que terminaram no impeachment do presidente Collor. Na semana passada, mesmo procurado insistentemente, Lindbergh preferiu se calar. Até políticos mais jovens, menos tradicionais, preferiram o silêncio. A deputada Manuela D"Ávila (PCdoB-RS) chegou à política pelo movimento estudantil. Manuela preferiu não participar de nenhuma manifestação nem emitir opiniões. "Temos de ter humildade de ouvi-los por mais tempo", afirma Manuela. "Vamos levar algum tempo para depurar tudo isso. Prefiro só ouvir por enquanto. É o momento deles."
Os protestos criados por eles são um marco histórico. São os primeiros feitos no Brasil, desde a década de 1980, que não contam com a presença ou a liderança do PT. Desde as greves no ABC paulista, que ajudaram a derrubar a ditadura militar, até a campanha pelo impeachment de Fernando Collor, o PT foi o protagonista. Após dez anos de poder, é a primeira vez que um movimento de protesto em escala nacional é feito não só, mas contra o PT. É o fim do ciclo do PT identificado como partido dos movimentos populares, com anseios de mudança e oposição a mazelas na política.
Não há surpresa na opinião dos manifestantes nem no comportamento dos políticos. Há anos os brasileiros estão descontentes com a política e os rumos que os políticos deram à democracia. Entre os habitantes dos países da América Latina, os brasileiros estão entre os que nutrem menos apreço por partidos ou pelo Congresso - dois pilares essenciais para a manutenção da democracia -, segundo dados do Latinobarômetro, organização que faz estudos de opinião pública. Em 2011, 57% dos brasileiros responderam que seria possível viver sem partidos políticos. Uma pesquisa feita pelo Datafolha na semana passada mostra que, em dez anos, caiu consideravelmente o prestígio de partidos políticos, do Congresso e da Presidência da República. O descontentamento aparece nas entrelinhas de pesquisas em período eleitoral. Os entrevistados afirmam constantemente que a política é feita sempre pelas mesmas pessoas e que gostariam de ver "caras novas". Os jovens que formaram a massa das manifestações foram criados num ambiente em que a política partidária não é aberta às pessoas comuns. Há quase menos de duas décadas, os partidos políticos se transformaram em máquinas de disputar eleições, buscar cargos e gerir recursos do Fundo Partidário e de doações para campanhas eleitorais. "Há tempos os movimentos populares querem falar", afirma o cientista político Fernando Abrucio, da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. "Se os partidos dessem espaço para novas pessoas e discussões, isso poderia ser feito de forma organizada. Mas os partidos estão fechados."
Historicamente, o descontentamento que não encontrava eco nos partidos políticos desaguava na formação de movimentos sociais. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nasceu em 1984, no Rio Grande do Sul, para lutar pela reforma agrária. Por anos, com a ajuda do Partido dos Trabalhadores, esses movimentos pressionaram a política formal no Brasil. A década do PT no exercício do poder alterou a vida desses movimentos sociais. A ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência levou ao aliciamento desses movimentos. Organizações ligadas ao MST serviram de biombo para o movimento receber dinheiro público. Os sindicatos, um foco de protestos pelo qual o próprio Lula chegou à política, abandonaram as greves em troca de recursos públicos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da ausência de fiscalização sobre seus gastos. A União Nacional dos Estudantes (UNE), histórico pilar de manifestações desde a década de 1940, apoia o governo. Desde 2003, a UNE recebeu mais de R$ 15 milhões por convênios com o governo federal. Em 2010, recebeu ainda uma indenização de R$ 30 milhões da União. A UNE não foi vista nas manifestações da semana passada. Sua presidente, Virgínia Barros, eleita há um mês, afirma que a entidade estava lá. "A UNE esteve em todas as manifestações. No Recife, fomos nós que lideramos o movimento pela redução de tarifas do transporte público", diz. "A UNE está muito entusiasmada com as manifestações." Em Brasília, manifestantes hostilizaram os poucos militantes que tentaram agitar uma bandeira da UNE durante o protesto da quinta-feira.
O governo Dilma significou um rompimento entre governo e movimentos sociais. A presidente Dilma Rousseff é distante deles, hoje pouco ouvidos no Palácio do Planalto. Sem força, movimentos com estruturas antigas foram suplantados por jovens sem lideranças definidas, mas capazes de se organizar por redes sociais. "Esses jovens perceberam que os partidos políticos se aproximaram do movimento estudantil apenas para amealhar quadros e recursos", afirma o filósofo Roberto Romano. "É natural que estudantes mais politizados tenham ojeriza de partidos."
O PT e o governo foram pegos de surpresa por essa nova situação. Na primeira semana de protestos, o governo federal se manteve distante. A presidente Dilma Rousseff não tocou no assunto. De maneira protocolar, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, foi encarregado de falar. Após a eclosão de outros focos do movimento pelo Brasil, no início da semana Dilma foi a São Paulo se reunir com o ex-presidente Lula e o prefeito Fernando Haddad. Encontrou-se também com o marqueteiro João Santana, responsável por avaliar os riscos das ações do governo ao projeto de reeleição de Dilma em 2014. Só depois disso Dilma se manifestou. Na terça-feira, em evento no Palácio do Planalto, ela fez um discurso de 17 minutos para falar do novo marco regulatório do setor de mineração. Dedicou as 497 palavras finais das 1.732 do discurso para falar nos protestos. "Os que foram ontem às ruas deram uma mensagem direta ao conjunto da sociedade, sobretudo aos governantes de todas as instâncias", disse Dilma. "Essa mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores escolas, melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à participação." Dilma não reconheceu nenhum erro do governo que pudesse ter levado à eclosão do movimento. Preferiu encerrar seu pronunciamento com uma frase moldada ao estilo de João Santana para a campanha: "Quero aqui garantir a vocês que o meu governo também quer mais, e que vamos conseguir mais para nosso país e para nosso povo".
O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e o governador do Estado, Geraldo Alckmin, não puderam usar a tática de se esconder dos protestos. Obrigados a enfrentar os manifestantes desde o início, vacilaram e erraram num balé com direito a idas, vindas, voltas e piruetas de dar inveja aos mais exímios dançarinos. Haddad se recusou a receber os manifestantes no início. Alckmin não condenou a ação violenta da Polícia Militar. Deveriam ter seguido os passos de um outro colega no Executivo. Durante seu governo, o então presidente Lula convocou ministros para uma reunião com fazendeiros e militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. As discussões se acirraram e demoraram. "Presidente, mas que decisão o senhor espera tomar daqui?", disse um ministro. "E quem disse que quero decidir alguma coisa?", afirmou Lula. A política é o campo da negociação. Não é preciso, necessariamente, decidir algo ou fazer a vontade do outro - mas é essencial dar espaço para que ele se manifeste e seja ouvido. Alckmin e Haddad aprenderam isso da pior forma. Foram obrigados a recuar no aumento da tarifa. Numa entrevista conjunta, contrariados, avisaram que terão de cortar investimentos para bancar a arrecadação menor.
As manifestações das últimas semanas podem fazer bem à democracia. Na semana passada, parlamentares perceberam que o clima não é dos melhores e adiaram a votação de alguns projetos delicados ou que poderiam gerar insatisfação popular. Um deles, que pode extinguir os poderes de investigação ao Ministério Público - instituição que tem sistematicamente produzido denúncias sobre a corrupção de políticos -, ficou para o segundo semestre. Um grupo de trabalho de deputados estudava alterações para amolecer os critérios da Lei Ficha Limpa, aprovada em 2010 por iniciativa popular. As mudanças tornariam mais fácil aos políticos escapar de punições e ficar livres para disputar eleições. Os parlamentares acharam melhor esquecer esse assunto até o segundo semestre. O clima não permite afrontas.
Obrigar os políticos a mudar seu comportamento pode ser uma das boas consequências do movimento. Não é apenas por meio do voto, a cada dois anos, que os eleitores influem na política. Pressionar governos contra medidas, como aumentos da tarifa de ônibus, ou em busca de serviços públicos mais decentes é um direito - e até obrigação - dos cidadãos.
Fazer isso sem permitir que políticos oportunistas se aproveitem do esforço popular é uma vitória adicional. O perigo é levar às últimas consequências a ojeriza que parte dos manifestantes nutre pela política em geral. Não é possível prescindir do exercício da política via partidos, Parlamento e eleições para exercer a democracia. Em mais de dois mil anos, a humanidade não encontrou uma forma mais eficaz de organizar a vida social do que a democracia. "A democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que já foram tentadas", dizia o primeiro-ministro inglês Winston Churchill. A ironia de Churchill é cabível porque a democracia permite não só a diversidade de opiniões, mas de propósitos. E extremamente difícil conduzir o regime democrático. O risco de atacar partidos ou o Congresso Nacional é atacar a própria democracia. A alternativa a isso é muito pior do que as mazelas que se aproveitam da liberdade. As ditaduras são ineficientes, injustas e multiplicam as iniquidades. Não há caminho fácil.
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