sábado, 6 de julho de 2013

Te Contei, não ? - Da internet para o asfalto

As passeatas que se espalharam pelo Brasil mostram as novas estratégias de engajamento e ação dos movimentos sociais.



Começou com um protesto contra o aumento da passagem de ônibus, avançou para uma onda de violência e resultou num massacre: o Exército reprimiu o movimento e matou pelo menos 300 manifestantes. Contas extraoficiais colocam o número de vítimas na casa dos milhares. O pesadelo ocorreu na Venezuela, em 1989. Felizmente, para cada história de terror nascida em protestos populares, há várias outras com final feliz. Em 1960, estudantes negros na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, começaram a se sentar em lanchonetes e restaurantes que serviam somente a brancos. Lá ficavam, pacificamente, sem ser atendidos. Sabiam que sua simples presença incomodava. Em um ano, cerca de 70 mil pessoas participaram desse tipo de ato público, chamado, em inglês, de sit-in. Em português, poderíamos apelidá-lo de "sentadaço" ou "sentadão". Em 1964, como resultado dessa e de muitas outras frentes de pressão da sociedade, o Congresso americano aprovou a Lei dos Direitos Civis, que proibiu a discriminação. Os dois eventos ocupam lugares importantes na árvore evolutiva dos protestos e permitem entender por que alguns se tornam movimentos organizados e outros não.
Essa família de ativismo ganhou recentemente um novo ramo vistoso. São os movimentos sociais da geração conectada. É desse ramo que brotou a onda de passeatas atuais no Brasil. Embora recente, essa família é bem estudada. Nos últimos anos, ela deu as caras na Turquia, nos Estados Unidos, na França, no Reino Unido. Ao observar movimentos assim, os contemporâneos e os antigos, suas reivindicações, táticas e resultados, entendemos melhor o que vem ocorrendo nas ruas desde o dia 6 de junho. E obtemos algumas pistas sobre o que poderá ocorrer no Brasil no futuro próximo.
Um movimento social traduz uma das maiores belezas da vida em sociedade - grupos de cidadãos atuando em conjunto para conquistar ou garantir direitos. A anatomia desse fenômeno foi bem descrita pelo sociólogo americano Charles Tilly. Todo movimento social digno do nome tem uma ou mais causas coletivas, identifica um ou mais oponentes a pressionar e envolve um esforço público prolongado na busca dos objetivos. O que mais importa para os brasileiros neste momento, porém, é que um movimento social só merece esse rótulo se adotar ações visíveis para a sociedade, como as passeatas.
Dentro dessa família, podemos colocar os protestos atuais num gênero mais específico. Trata-se do primeiro movimento social a usar, no país, táticas modernas de ocupação urbana com o uso intensivo de ferramentas digitais. Tais ações visíveis ganham um impacto muito maior. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) são bem organizados e eficazes em suas ações. Mas usam sempre as mesmas táticas e têm líderes bem definidos. Os protestos atuais atuam de acordo com outra cartilha, que vem sendo escrita nos últimos anos, em imensas ondas de protestos como a Primavera Árabe ou o Occupy Wall Street.
Esses movimentos dispensam hierarquia rígida e contam com uma variedade de táticas para evitar que suas demonstrações sejam encerradas pelas autoridades. Em Portland, nos EUA, os manifestantes do Occupy Wall Street descobriram como vencer a tropa de choque. Quando a polícia avança, eles recuam em bloco. Marcham sem destino predefinido, por ruas com tráfego intenso. A polícia não consegue atacá-los e, se os segue, congestiona ainda mais o trânsito. Na Turquia, a tática é todos ficarem de pé, sem conversar. A polícia não tem como afirmar que os manifestantes fazem parte de um grupo. Em São Paulo, na segunda-feira passada, a marcha se dividiu repentinamente em três, cada uma com um destino. O cientista político americano Gene Sharp, professor na Universidade Massachusetts Dartmouth e ativista, relacionou 198 desses métodos não violentos de protesto e persuasão no livro Da ditadura à democracia. Eles foram pensados para enfrentar autoridades em regimes ditatoriais. Servem também para enfrentar governos e polícias simplesmente truculentos ou incompetentes em países democráticos, como o Brasil.
Hoje, essas táticas se apoiam na internet e nos dispositivos móveis. "As redes sociais são usadas para mobilizar, discutir os formatos dos protestos e informar os eventos em tempo real", diz Alfredo Motta, especialista em marketing digital e sócio da agência Namosca. Há, porém, mais uma característica nos protestos atuais que merece atenção. A onda de passeatas nasceu organizada por um movimento social pequeno, organizado e coeso, o Movimento Passe Livre (MPL). Tornou-se algo muito maior e mais complexo — e escapou ao controle de seus criadores. Nesse ponto de seu ciclo de vida, um movimento que não tem mais uma cabeça pode se encaminhar para alguns desfechos possíveis. No extremo ruim, abre oportunidades para líderes e participantes autoritários e violentos. Uma outra possibilidade é que ele simplesmente perca força e evapore, principalmente depois de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo admitirem rever os preços das passagens de ônibus. Há ainda uma terceira opção. Nela, o movimento atual consolida uma nova ferramenta de ação para os cidadãos. Ela mostra às pessoas comuns sua força e sua voz. Fica como um recurso para ser usado de novo, sem violência, sempre que a sociedade precisar dele.


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