sexta-feira, 5 de julho de 2013

Te Contei, não ? - A fé em forma de arte

              
 
 
  
 
Ticiano, Caravaggio, Fra Angelico… Os grandes mestres do acervo do Vaticano serão exibidos no Rio de Janeiro na maior exposição de arte sacra já realizada no país
 

No século XVI, quando as caravelas portuguesas chegavam ao Brasil, a Renascença sacudia a Europa e a civilização, enfim, emergia de vez das sombras da Idade Média. No território que é hoje a Itália, berço dessa efervescência, os artistas e suas obras, abrigados sob o manto da Igreja Católica e das famílias mais poderosas, ganhavam importância e valor. Foi nesse ambiente de ebulição que o papa Júlio II lançou as bases do que viria a se tomar os Museus Vaticanos, ato fundamental para a consolidação de um conceito novo, o de colecionar arte, e a posterior implantação de magníficos museus por toda a Europa, fonte perene de encantamento para seus visitantes. “O silêncio reinante criava uma impressão única e solene, semelhante à emoção que se sente ao entrar na casa de Deus”, resumiria o poeta alemão Goethe, ao visitar uma galeria em Dresden, já em 1768. É justamente dos Museus Vaticanos, e também de outros ligados a dioceses e instituições católicas, bem como de algumas coleções particulares, que vêm as 106 obras trazidas à exposição Herança do Sagrado, com inauguração prevista para 10 de julho no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. “É a maior mostra de arte sacra realizada no Brasil e uma das mais importantes com o acervo do Vaticano fora da Itália”, afirma a diretora do museu, Mônica Xexéo.
De fato, os nomes são espetaculares: por três meses, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Caravaggio, Fra Angelico e Ticiano estarão entre nós. Verdade que não na sua melhor forma – Herança do Sagrado é uma exposição de obras menores dos maiores artistas que o mundo já conheceu. Mesmo assim, merece ser visitada, pela chance que se tem de apreciar nuances, comparar estilos ou simplesmente admirar o trabalho de tantos mestres reunidos num mesmo espaço. Uma pintura de Ticiano, o gênio das cores vívidas, uma sequência de rostos de Cristo exibidos lado a lado (um deles pela primeira vez desde que foi acomodado em uma capela particular do papa, dentro do Vaticano), uma rara escultura atribuída a Leonardo da Vinci, antiguidades e objetos sacros de estilos e épocas diversas são, merecidamente, chamarizes que devem atrair multidões. Até porque a cidade estará lotada. A exposição íntegra o calendário de atividades culturais da Jornada Mundial da Juventude, o encontro dos jovens católicos no Rio, entre 23 e 28 de julho, quando se espera mais geme que na Copa do Mundo e na Olimpíada. O próprio papa Francisco talvez abra uma brecha em sua agenda para apreciar as obras.
A trajetória do catolicismo foi magnificamente ilustrada em obras-primas de todos os estilos e épocas. O apogeu desse encontro sublime da fé com a arte se deu na Renascença, quando a Igreja Católica era grande empregadora de pintores e escultores renomados como Michelangelo. A ele, o mesmo papa Júlio 11 encomendou o teto da Capela Sistina (conta-se que, quando o pintor reclamava de cansaço e dores pelo esforço físico de pintar horas a fio deitado sobre um andaime. o papa de gênio irascível ameaçava substituí-lo pelo jovem e brilhante Rafael). Michelangelo era religioso e angustiava-se com sua “natureza pecadora”, como deixou entrever em inúmeras cartas. Já Da Vinci tinha relação mais distante com a fé. “Em uma passagem de seus estudos de anatomia, após comentar a composição do corpo dos animais. ele conclui, com ironia: ‘A definição da alma, deixo para os frades, pais do povo, que por inspiração sabem todos os segredos’”, relata Eduardo Kickhõfel, professor de filosofia da Unifesp e estudioso da Renascença.
Um dos pomos altos da exposição é o quadro Ressurreição (1542-44), de Ticiano, em que o grande pintor veneziano exibe o magistral uso de cores que lhe é característico e já dá sinais, ainda que sutis, da progressiva dissolução dos contornos – uma marca de sua obra mais madura que viria a inspirar, em alguma medida, os grandes impressionistas três séculos mais tarde. Os traços mais difusos tiveram influência de Da Vinci. Em uma visita a Veneza, o criador da Mona Lisa apresentou a artistas locais a inovadora técnica do sfumato; que Ticiano posteriormente absorveu e adaptou. Algumas obras expostas ajudam a entender a passagem do estilo renascentista, formal e austero, para a dramaticidade do barroco. Uma delas é o relicário da Santa Cruz, de Gian Lorenzo Bernini, o mais importante escultor do seu tempo. “Esse relicário se destaca pela qualidade técnica e por ser de prata, material muito menos abundante no século XVII do que o ouro”, observa Mozart Bonazzi, professor de conservação e restauro na PUC de São Paulo. Ainda no barroco, sobressai a tela São Pedro, do espanhol José de Ribera. É um de seus primeiros trabalhos depois de se mudar para Nápoles, em 1616. Retratista de uma realidade crua e imperfeita (“Ele pinta com o sangue dos santos”, dizia o poeta Byron), Ribera representa o santo de barba grisalha, rugas e unhas sujas.
A escolha das obras foi entregue ao italiano Giovanni Morello, que trabalha há quatro décadas nos museus da Santa Sé e atualmente coordena o comitê organizador das grandes exposições vaticanas. “Selecionei quadros e objetos que até hoje me causam emoção, lindas imagens capazes de tocar tanto o visitante leigo quanto o próprio papa Francisco”, diz ele. Logo na entrada da mostra, o cunho religioso se expressa nas quatro representações do rosto de Cristo – das quais a menos importante, por incrível que pareça, é a assinada “Leonardo da Vinci e collaboratori”, por ter sido na verdade pintada por algum aluno ou assistente do mestre. O Cristo de Fra Angelico, belo afresco que fazia pane de uma decoração destruída pelo tempo, reproduz com delicadeza as técnicas de perspectiva e iluminação típicas do pintor-religioso. Outro fragmento, o Salvador do Mundo, de Melozzo da Forli, serve de amostra do grande artista do fim do século XV, do qual poucas obras foram conservadas até os dias de hoje. “Esse rosto de Cristo revela uma curiosa influência flamenga sobre a pintura italiana”, diz o professor Bonazzi. A representação mais antiga de Jesus é o mandilion (palavra grega adaptada de mandil, que em árabe quer dizer tecido), do século m. Acredita- se que o pedaço de pano tocou o rosto do próprio Cristo, que aparece com cabelo escuro, pele morena e bigode fino e escorrido. Protegida por uma moldura colocada em 1623, a imagem fica guardada na Sala das Lágrimas, como é chamado o local onde os papas recém-eleitos aguardam o momento de ser apresentados aos fiéis. Aberta até 13 de outubro, Herança do Sagrado espera atrair 60000 pessoas por semana, talvez o dobro disso durante a Jornada. Nesse penedo, prevê-se espera de duas horas na fila – um sacrifício que, em sintonia com o caráter religioso da mostra, será bem recompensado.
 

 
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário