O angolano Pepetela é envolvente não só na literatura. Vencedor do prêmio Camões de 1997, o autor tem participação importante na vida cultural e política de seu país. Foi militante da causa da independência, viveu no exílio e, na Angola livre, ocupou cargos no governo.
Em seus romances, assim como em sua fala, estão presentes História, realidade e cultura angolanas. Como a independência só veio em 1975, suas preocupações mostram a nação em construção, que precisa proteger suas culturas regionais e encontrar sua História, mesmo que por meio de antigos mitos.
A Sul. O Sombreiro, que acaba de ser lançado no Brasil, é a nova contribuição do autor para uma visão africana dos últimos séculos no continente, que seja diferente das versões oficiais contadas por missionários cristãos e exploradores europeus.
Como vê as relações do Brasil com países africanos de fala portuguesa?Vejo com satisfação uma relação muito mais próxima. Era uma frustração pessoal, dos anos 70 aos 90, não termos ligações tão frequentes e próximas. Como eu esperava, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola. Foi uma situação muito complicada, porque o Brasil ainda vivia em uma ditadura militar aliada aos Estados Unidos, que era contrário ao governo de Angola. Foi um momento importante, porque sentimos que nem tudo no Ocidente estava contra nós. O reconhecimento foi um fruto do acaso e da coragem de dois ou três diplomatas brasileiros, coordenado pelo embaixador Ovídio de Andrade Melo, que decidiram afrontar o regime e acabaram castigados mais tarde. Quando os generais entenderam o que os diplomatas haviam feito, já não havia como recuar.
O diálogo mudou?O governo militar não ajudava. Naquele período, eu vim ao Brasil para assinar um acordo na área de educação. Havia técnicos e governos estaduais que demonstravam interesse em atuar conosco, mas em geral não nos davam importância. O contato só começou a crescer no governo Fernando Henrique Cardoso. A empreiteira Odebrecht está em Angola faz tempo e creio que tenha feito um lobby aqui para que passassem a nos tratar com atenção. Com o Lula, a situação melhorou, porque ele gosta muito da África. Hoje há mais intercâmbios e negócios. Não é só a Petrobras que está lá. Claro que ainda há desequilíbrio na balança comercial entre os países, o que é normal. E ainda há mais angolanos vindo para cá do que o inverso, embora já exista uma boa colônia brasileira em Angola.
Há intercâmbio cultural?A moda brasileira, especialmente de praia, é muito apreciada lá. Mas o intercâmbio não tem sido grande ainda na cultura, em teatro, cinema, literatura e música, embora músicos daqui se apresentem lá e vice-versa. No começo, teve até muitos músicos que foram para lá, houve um convívio com Chico Buarque, Gilberto Gil, Djavan e muitos outros. O Martinho da Vila é praticamente de casa. A Odebrecht levava filmes brasileiros. Depois diminuiu.
Qual a influência da TV?É algo muito forte. Antes era só a Globo, mas agora tem também a Record e a Bandeirantes. O nível da TV é um fast-food da cultura. Talvez o impacto mais forte seja o crescimento do Brasil no imaginário angolano. Muitas pessoas, até de classes mais pobres, pensam em vir conhecer o Brasil. O angolano acaba vendo no brasileiro um povo acolhedor e um lugar onde tudo acaba bem, que é uma visão criada pelas telenovelas. E há uma influência crescente da Igreja Universal, que faz outra ligação com o Brasil. Mas é uma ligação desequilibrada, pois existe mais o angolano interessado pelo Brasil do que o inverso. Agora talvez comecem a saber mais, porque passou a ser obrigatório estudar a África nas escolas brasileiras.
As novas gerações tendem a ter outra visão?Essas crianças terão um conhecimento maior sobre isso quando se tornarem adultos do que existe hoje. O Brasil tem isso de negar a existência de um racismo, de se dizer uma sociedade igualitária, mas basta cavar um pouco para ver o preconceito. Quando vim pela primeira vez ao Brasil, notei o racismo assim que desembarcamos, no Rio de Janeiro. É verdade que foi há trinta anos e o Brasil mudou de lá para cá.
O português é hoje o principal idioma de Angola?A língua oficial é o português e há muitas línguas de origem africana. Você vê as crianças falando em português enquanto brincam na rua. Não temos o dado oficial, mas estimo que hoje mais de 85% da população de Angola entende a língua oficial e fala com maior ou menor competência. Falam também fora das cidades os idiomas africanos da região. Temos 42 dialetos, de sete idiomas, segundo os antropólogos. O problema é que essas línguas são cada vez menos faladas, porque o português vai se impondo. Acho que todo mundo deve ler, escrever e falar na língua oficial, mas sem perder o idioma da mãe ou da avó, quando a mãe já não sabe. Há dados culturais que se perdem quando abandonamos uma forma de comunicar. Formas de comportamento social que se manifestam naquela cultura. Há valores que estão dentro dessa ancestralidade, como o maior respeito à mulher, ao mais velho e ao que chega.
Como é o trabalho para manter essa cultura viva?Temos vitórias na preservação. Uma é a lei que obriga as escolas a ensinar as línguas africanas de cada região. É complicado de aplicar, porque houve muitos deslocamentos de população, de modo que línguas faladas só no sul hoje também são usadas no norte. É problema a ser resolvido nas escolas. Mas já há professores formados para ensinar esses idiomas. Também se conseguiu que o noticiário fosse transmitido em cinco dos sete idiomas principais, na rádio estatal e em uma emissora de TV. Temos a alfabetização de adultos em banto, que engloba as línguas originárias do centro-sul da África. Acho mais importante o ensino das línguas africanas do que nas línguas africanas. Alguns países tentaram, mas com resultados ruins. Há conceitos científicos difíceis de transmitir em banto.
Qual a sua opinião sobre o acordo ortográfico?O acordo deveria ter sido mais radical. Aproximou um bocadinho a maneira de escrever as palavras, mas há demasiadas exceções. Podiam ter encontrado maneiras criativas de aproximar as formas de escrever, mesmo que as pessoas digam de modo diferente. Os brasileiros falam "incômodo" e os portugueses, "incómodo". Por que não criar um acento neutro, um traço em cima da letra só para marcar a sílaba tônica? Soluções que podiam inventar. Não quiseram ser ousados. A abolição da trema é polêmica. Já não usávamos e eu sentia falta, principalmente no ensino. A maneira de escrever influencia a maneira de falar de pessoas com menor erudição. É um problema que vemos até em apresentadores de TV. Em vez de colocarem o trema para todos, tiraram do Brasil. E há possibilidade de Portugal recuar e aí será um caos, pois não teremos mais o antigo nem o novo.
Quais autores brasileiros são mais lidos em Angola?Ainda são os que influenciaram minha geração, como Jorge Amado e Graciliano Ramos. Mais modernamente, conseguiu entrar o João Ubaldo Ribeiro. Mas recentemente não há. Por muito tempo, Angola não importou livros, por falta de dinheiro. E como havia poucos recursos, eram poucos autores do país publicados em edições locais. Eu até me sentia mal por ser um dos eleitos, ainda mais vendo autores jovens que buscavam espaço. Agora já há mais edições, principalmente dos escritores locais. Claro que há uma elite da elite que conhece nomes mais atuais, mas é um grupo pequeno. Não é um problema só com o Brasil, os portugueses, moçambicanos e cabo-verdianos não são lidos.
Como trabalhou a História em A Sul. O Sombreiro?Tive o trabalho facilitado em parte por já ter escrito outro livro sobre o período, Gloriosa Família (Nova Fronteira), que tratava da época em que os holandeses ocuparam o Nordeste do Brasil e os portos de Angola, Luanda e Benguela, para controlar o tráfico de escravos. Para escrever Gloriosa Família, fiz uma pesquisa grande em Portugal e tive ajuda de dois amigos, um holandês e um italiano, que buscaram documentos no Vaticano e nos arquivos da Companhia das Índias Ocidentais. Foi importante a leitura do Monumento ao Missionário Africano, 20 volumes editados em Portugal em 1952 e hoje raros. Nela, estão as correspondências dos missionários para o Vaticano. Há informações interessantíssimas sobre guerras entre diferentes ordens, luta entre padres brancos e mulatos. E há dois livros de um historiador, que por acaso era primo da minha mãe e bem português, e destacava o lado patriótico do conquistador de Benguela, Manuel Cerveira Pereira. Eu só vejo nele o interesse pela riqueza. Eu o ficcionei para a construção do livro, mas os passos do Cerveira Pereira que relato são os que se sabe historicamente. O que há é que encontramos muitos relatos dos seus inimigos, que o colocam na escória, e poucos de seus amigos, os jesuítas. E a defesa é às ideias e nunca à pessoa em si. Os defensores mais atrapalham a imagem dele do que ajudam.
É preciso dar uma outra visão da História?Ainda há pouca coisa sobre a História de Angola, pois os escritos começam a partir da chegada dos portugueses. O que está para trás só existe na ordem do mito. A Lueji, que é o nome da minha filha, foi uma rainha que criou um império no Nordeste de Angola. É um mito sobre o qual encontrei seis versões diferentes. Então, decidi criar uma sétima. Agora, esse mito é visto pelos angolanos como História, por conta do livro. Tanto que virou nome de universidade e de avenida.
Não é ruim transformar mito em História?Não faz mal a ninguém. Só faz bem, pois aumenta a autoestima do povo. E serve para chamar a atenção para os buracos que temos no conhecimento da nossa identidade. É uma forma de provocar os historiadores a estudarem mais sobre Angola. Está na hora de ter uma visão que não seja a colonial do que se passou no país. Em 1965, dez anos antes da independência, fiz parte de um grupo de angolanos em Argel e escrevemos Apontamentos da História de Angola, que era a primeira visão nacional sobre o que se passou em nosso território. Só conhecíamos esse passado pelos relatos de portugueses e missionários europeus. A partir daquele momento, começamos a construir nossa versão, ainda que fosse pela ficção.
Revista Língua Portuguesa
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