segunda-feira, 30 de julho de 2012

Te Contei, não ? - Passeio pela Salvador de hoje e de 1986


SALVADOR - Em 1945, a Salvador de Jorge Amado era, nas palavras do escritor, uma cidade pobre de hotéis, paupérrima de restaurantes, sem teatros e com pequena vida noturna. “Falamos mal dos hotéis, dos restaurantes, dos cabarés. Falemos agora mal dos cinemas. A Bahia ainda está à altura do cinema que merece”, escreve ele em “Bahia de Todos-os-Santos — Guia de ruas e mistérios de Salvador”. O livro ganhou revisões em 1960, 1966, nos anos 1970 e em 1986. No mês que vem, a última adaptação feita por Amado chega às livrarias pela Companhia das Letras. O relançamento oferece boa oportunidade para ver o que ainda se mantém da Salvador descrita por ele em 1986.

— O livro é um canto de amor à cidade, contando da história, da gente, do sentir, da beleza, dos grandes personagens ali nascidos e criados e, sobretudo, da maneira de ser única e original dos habitantes — diz Paloma Amado, filha do escritor.
De 1945 para 1986, muita coisa mudou, como o próprio Jorge dizia. Aquela cidade “provinciana, descansada, tranquila, doce, bela e única”, com pouco mais de 300 mil habitantes, havia se tornado uma metrópole “ruidosa, movimentada, turbulenta, sua doçura fundamental entrecortada de violência”. De 1986 para cá, ela está ainda mais ruidosa e movimentada. Mas muitos dos cenários e personagens listados no guia se conservam. Escreve Amado: “Dos filhos de Caymmi, (João Gilberto é) o mais louco e o mais angelical. Dos segredos das camarinhas surgiu Gilberto Gil, acento negro na voz límpida, melodia que desce da senzala para conquistar a praça e o poder. Da festa de Nossa Senhora da Purificação em Santo Amaro, de comício impossível, proibido, desembocou Caetano Veloso, barco em mar de temporal”.
Entre os muitos outros artistas ainda ativos está o escultor Mário Cravo, ilustrador de livros de Amado como “Suor” e “Navegação de cabotagem”. No guia, ele é chamado de “mestre”, dono de uma “uma arte revolucionária”, um dos pioneiros da arte moderna na Bahia. Hoje, aos 89 anos, ele trabalha diariamente pela manhã em seu ateliê.
— Amado foi o maior contador de histórias do século XX — diz Cravo, que prepara exposição na galeria Paulo Darzé, em Salvador, para 13 de abril de 2013, quando completa 90 anos. — Mostrarei obras recentes e antigas, com objetos que representam fases mais importantes da vida.
Quem também não para de trabalhar é a fotógrafa Arlete Soares. Aos 72 anos, continua à frente de sua editora, a Corrupio, e lançou no ano passado o livro “Anônimos”, com fotos de suas andanças por China, Tibet, Índia, Nepal e Egito. No guia, Amado dizia que ela, “devorada sempre pelo fogo da paixão”, era um dos “promotores de cultura mais importantes do Brasil”.
— Jorge embelezava as coisas. Era otimista, sempre de bem com a vida — minimiza os elogios.
Citada no livro, mãe Stella de Oxóssi, ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, é uma das principais líderes do candomblé do país. Era muito ligada a Amado, assim como a Dorival Caymmi e Carybé. Em “Bahia de Todos-os-Santos”, o autor a define como “prudente e forte, flexível e inteligente, capaz e firme”, dizendo que com ela os dias de grandeza do Axé do Opô Afonjá retornaram. Amado era Obá Àrolu da casa — título dado aos amigos e protetores do terreiro. Aos 87 anos, mãe Stella cumpre intensa rotina de obrigações, rituais e reuniões.
— Que jeito, rapaz. Estou com problema nas pernas, dor ciática, mas a cabeça está dando para entender, para fazer meus bozós — diz ela, lembrando que já gostava de Amado antes de conhecê-lo. — Toda moça gosta de escritor. Era como se Jorge encarnasse os personagens.
Mais tarde, nos anos 1960, ele passou a frequentar o centro, onde ficava horas conversando com mãe Senhora — nessa época mãe Stella era apenas filha de santo do terreiro.
— O santo dele é Oxóssi. Meu orixá, também. A gente já tinha essa ligação espiritual.
A geografia da cidade espalha-se pelo livro. Em 1986, a Rua Chile é “o coração da cidade”, onde “se exibe toda a gente”, cenário do “comércio mais elegante, do footing, da conversa, de negócios também, de namoros, de brilho, de exibição”.
— A importância dela é passado. Era a rua dos coronéis e dos grã-finos. Hoje não presta mais — diz o vendedor de água de coco que faz ponto em frente ao Elevador Lacerda.
Mas ela pode vir a recuperar uma pequena parte da magia. Será erguido no antigo prédio do jornal “A Tarde” o primeiro hotel Fasano do Nordeste, em frente à Praça Castro Alves.
Um dos capítulos do guia se detém nas igrejas. “Diz a lenda que a cidade do Salvador conta com 365 igrejas, uma para cada dia do ano. Dizem os amigos dos números exatos que entre igrejas e capelas elas somam 76. Pouco importa.” Uma das mais populares é a de Nossa Senhora do Rosário dos Negros, no Pelourinho, “sempre cheia de gente, extremamente ligada aos ritos do candomblé”. A igreja, do século XVIII, foi reaberta em abril, após um ano e meio fechada para obras.
Em 1945, havia poucos restaurantes “apresentáveis”. Para uma boa comida baiana, Amado recomendava o Estrela do Mar, de propriedade de Maria de São Pedro. Em 1986, ela já havia morrido, mas a tradição continuava, agora com um restaurante que levava seu nome. Hoje em dia, o Maria de São Pedro divide espaço com o Camafeu de Oxóssi — outro restaurante frequentado por Amado — no Mercado Modelo. À frente, o filho caçula de Maria, Luis Domingos, de 72 anos.
— Às vezes ele vinha direto da Europa para o restaurante. Nosso forte é a moqueca, mas galinha ao molho pardo era seu prato preferido aqui — afirma Domingos.

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