quarta-feira, 25 de julho de 2012

Resenhando - Álbum de memorias


Retratos antigos, de Elisa Lispector. Organizado por Nádia Battella Gotlib. Editora UFMG, 143 páginas. R$ 85

Elisa Lispector inicia este relato memorialístico dizendo que, na época em que vivia, os dias eram tão atribulados que “mal dava tempo para pensar, muito menos para recordar”. Até parece se referir ao nosso tempo, quando a velocidade dos fatos tenta apagar as ações dos que resistem e seguem os conselhos do poeta: simplesmente param para ouvir as estrelas.

Este relato inédito pode ser lido nesta bela edição da UFMG, organizada com esmero por Nádia Battella Gotlib. Elisa o dedica aos sobrinhos, filhos de Clarice e Tania, e aos netos desta. O livro é um curto relato em dez capítulos sobre seus pais e seus avós paternos e maternos, com inúmeras fotos em preto e branco extraídas do “álbum de família” que o inspirou. Ao abri-lo, temos a sensação de entrar no túnel do tempo. Após vermos as fotos, lemos o relato tomados por uma atmosfera de sonho, e é inevitável: lembramos, também, dos nossos antepassados. O poder das imagens aliado a um relato singelo, e totalmente amoroso, nos leva para dentro de nós mesmos e nos convida a ouvir as estrelas. Elisa entendeu os versos de Bilac: “só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e entender estrelas.”


A memória é o caminho para o autoconhecimento

Ao se deparar com um velho álbum de família, Elisa o transformou numa espécie de cordão umbilical. Ela não admitia viver neste mundo tal como Adão e Eva no Jardim das Delícias antes da aparição do Criador, sem umbigo, livre das marcas genéticas, como imaginou José Saramago em “Caim”. Presa ao cordão umbilical, começou a tomar notas, e sentiu a necessidade de recorrer à ajuda da tia Ana, irmã de sua mãe. Esta, depois de contar-lhe como sua família de origem judaica viveu num tempo “terrífico e mágico”, pediu-lhe que desse paz aos mortos. Elisa entendeu as palavras da tia, mas não quis cortar o cordão umbilical. O desejo fortaleceu-se mais ainda quando a sobrinha-neta, Nicole Algranti, então com 8 anos, mostrou-se interessada em ver os “retratos antigos”.

Elisa Lispector previu e desejou que a sobrinha-neta um dia quisesse saber algo mais sobre a família. Nicole tornou-se cineasta e, como a tia, mantém-se presa ao cordão umbilical. Encontrou nos guardados de Elisa esses “Retratos antigos”, e aliou-se à sua mãe, Marcia Algranti, ajudando-a a divulgar a obra da tia. Nicole também encontrou a correspondência das irmãs Lispector, o que acabou motivando a família a publicar as cartas de Clarice para Elisa e Tania Kaufmann em “Minhas queridas” (Rocco), que organizei em 2007.

“Retratos antigos” testemunha este encontro familiar. É o relato de uma escritora fascinada pelo mundo sagrado de seus antepassados, guardiã da memória da família, não somente para perpetuar os valores daqueles que buscaram uma interpretação da vida nos Livros Sagrados, mas também porque vê na valorização da memória um caminho para o autoconhecimento, para a busca dos limites da condição humana.

Elisa acreditava que a literatura tinha um papel importante num mundo onde o ser humano é “massificado, perplexo e angustiado”. “Mais do que em qualquer tempo o homem precisa reencontrar-se”, e a arte permite este redescobrir-se a si mesmo, “propicia uma visão mais espiritual da existência, imprimi-lhe um sentido mais alto”, conclui Elisa.
Contista, romancista, crítica de teatro, Elisa foi uma mulher à frente de seu tempo. Publicou sua obra entre os anos 1940 e 1980, quando poucas mulheres ousaram ingressar no mundo literário. Seu romance mais festejado, “O muro de pedras” (1963), foi incluído na lista dos best-sellers, além de ganhar prêmios muito importantes: o José Lins do Rego (da José Olympio) e o Coelho Neto (da Academia Brasileira de Letras).

A publicação de “Retratos antigos” certamente despertará novos enfoques sobre a sua produção autobiográfica e ficcional, esta última particularmente esquecida pelo mundo acadêmico e pelo mercado editorial, principalmente após a sua morte, em 1989. O motivo alegado por muitos é o parentesco com Clarice Lispector. Argumento frágil, que deve ser revisto, pois os mecanismos da recepção e divulgação da obra literária envolvem muitas variantes.

“Abrir o baú” de Elisa Lispector com a publicação de “Retratos antigos” possibilita, também, uma revisão da biografia de Clarice Lispector. Ao conjunto de textos autobiográficos de Elisa, “No exílio” (1948), reeditado pela José Olympio em 2005, e “Retratos antigos”, soma-se o conto “Exorcizando lembranças” que, segundo Nádia Gotlib, mostra a relação da narradora com a mãe doente. O conto faz uma menção à doença da mãe de Clarice, e dá um diagnóstico diferente da versão apresentada na biografia “Clarice”, do escritor Benjamin Moser.
“Mostrar a razão profunda de cada um”, segundo dizia a escritora Dinah Silveira de Queiroz, é o que a “dona Olho-de-Uva”, como Clarice chamava Elisa, tem para nos dar. 


*Teresa Montero é autora de “Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector” (Rocco, 1999), idealizadora de Caminhos da Arte no Rio de Janeiro e do passeio O Rio de Clarice.


Jornal O Globo - Caderno Prosa & Verso

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