Uma das passagens mais eloquentes que conheço sobre a fronteira entre a vida e a morte se encontra no livro Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Nele, uma frágil almazinha em formação anima as entranhas de bichinhos silvestres, de um ou dois curumins inocentes, até que, um dia, encarna em um feroz aborígine, o Caboco Capiroba. Canibal convicto, o selvagem engorda europeus cativos com sádica paciência, antes de devorá-los à moda da casa.
No seu retorno ao poleiro dos anjos, depois de livre das amarras do insano Caboco, o desnorteado espírito sobe depressa aos céus, rezando para nunca mais ter de acordar em um mundo tão desalmado como este em que vivemos.
Apesar da tormentosa descrição de Ubaldo, encontro um grande conforto na ideia da reencarnação. Eu adoraria ter a eternidade para ajustar as contas, e não no paraíso ou no inferno, mas na vida terrena que tanto estimo.
Seria mesmo um alento, mas não cultivo tal crença.
Entre as inúmeras vantagens da reencarnação, eu destacaria os sucessivos fins. É uma forma de imortalidade muito diferente da angústia entediante dos vampiros e highlanders, condenados a ser os mesmos ad aeternum.
Um budista emérito me explicou, certa vez, que o que reencarna é uma parte tão ínfima que, nela, não há espaço para nada parecido com o que se entende por indivíduo, ou eu.
A teoria não difere muito da concepção materialista que tenho da morte. Acho que vou virar gás, água; vou apodrecer e servir de alimento para moscas, larvas ou bichos carniceiros. Voltarei para a mãe natureza como Lavoisier previu: sem nada perder, mas também sem deixar vestígios.
Não sei da mágica budista para reorganizar a energia dispersa de volta ao ser. Mesmo incapaz de conceber
o conceito, não deixo de me sentir seduzida pela possibilidade.
o conceito, não deixo de me sentir seduzida pela possibilidade.
Gosto de pensar que homens e mulheres retornam 1 milhão de vezes, alternando os sexos em temporadas distintas; longos ciclos contínuos de masculinidade e feminilidade.
Há os que estão começando a sua caminhada de fêmea e há os que estão abandonando a de macho. Nada a ver com desmunhecar ou falar grosso. Conheço sensualíssimos mulherões curvilíneos que, tenho certeza, retornarão homens feitos no próximo passeio na Terra.
Eu ia dar exemplos, mas temo ser deselegante. Sirvo eu de cobaia.
Nasci menina, tenho todos os romantismos de menina, mas a maneira como dispenso ajuda na hora de carregar as malas, o modo como me visto, tão afeito a alfaiatarias, e a inadequação ao ritual de beleza que meu sexo impõe me fazem desconfiar que deixei de fazer a barba há pouco tempo.
Tenho amigas que estão no auge da sua feminilidade, mas são tão diretas, ativas e voluntariosas que, notadamente, já estão tomando o rumo oposto.
Nunca pensei na questão da homossexualidade. A opção óbvia seria situar os que fazem essa escolha nas extremidades de cada fase.
Mas uma segunda consideração me fez fugir do esquema. Eu me lembrei dos Dzi Croquetes e de Silvinho, o cabeleireiro do Jambert, a locomotiva dos anos 70. Silvinho reinou alto, lindo, peludo e selvagem. Era gay e era bi. Aposto que tanto Silvinho quanto Lenny Dale voltarão cabras-machos, ou Barbies demais, sem meios-termos, se é que já não estão por aí. Talvez, o homossexualismo seja a maneira mais rápida de pular os infinitos degraus desse vaivém sem fim.
E você que me lê? Gostaria de renascer moça ou moço? Tem inveja do pênis? Morre de vontade de usar minissaia e não pode? Quantas encarnações ainda lhe restam no estado em que está?
Veja Rio
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