quarta-feira, 25 de julho de 2012

Te Contei, não ? - Praga antiga, problema novo

 
Da Colônia à República, corrupção persiste como doença política no Brasil.

Na semana em que o Senado cassou o mandato de Demóstenes Torres, acusado de atuar como lobista do bicheiro Carlinhos Cachoeira e às vésperas do julgamento do mensalão, talvez o maior escândalo político da história do país; O Globo destaca quatro casos, pesquisados e comentados pelo historiador Nireu Cavalcanti, que mostram como a corrupção - quase sempre acompanhada pela impunidade - é uma mazela antiga no Brasil.

Desde o início da colonização, as dimensões da Colônia e sua distância em relação à metrópole portuguesa facilitaram que as autoridades mandadas para cá abusassem de suas prerrogativas. O desenvolvimento de uma sociedade escravista acirrou esta desigualdade.

Quem é senhor de um ser humano imagina que pode tudo - avalia Cavalcanti. Os governantes pensavam assim e chegavam ao poder com apoio de gente com a mesma mentalidade. Além disso, nossa justiça sempre foi muito vagarosa, o que favorece a sensação de impunidade.

A colonização portuguesa, porém, não é a mãe de todas as culpas. Recife e Olinda, no século XVII, foram tomadas por holandeses, que mantiveram o poder torturando inimigos e subornando padres.

Algumas histórias abaixo, mesmo separadas pelos séculos, permanecem ligadas ao cotidiano do Brasil contemporâneo. Fantasmas que ainda assombram a nação.

Torturas e favores no Recife

Por 24 anos (1630-1654), Pernambuco esteve nas mãos da Companhia Holandesa das Índias Orientais - uma organização privada que atuava com velado apoio estatal. O principal expoente da invasão foi Maurício de Nassau. Entre 1637 e 1644, quando esteve à frente do domínio nordestino, o então conde caiu nas graças da elite local com uma gestão avaliada como eficiente e conciliadora. Apoiou o desenvolvimento de movimentos artísticos e o desenvolvimento das ciências, planejou a expansão urbana de Recife e fortaleceu a presença militar no território. Além destas realizações sempre lembradas, porém, Nassau usou outros artifícios, igualmente importantes para seu sucesso administrativo. Em um relatório de governo, endereçado aos seus sucessores, Nassau faz recomendações que não condizem com a aura que a História lhe conferiu, como tortura e suborno.

A tortura, à época, era institucionalizada - ressalta Nireu Cavalcanti. E qualquer pessoa suspeita de pertencer a movimentos favoráveis à retomada de Pernambuco pelos portugueses, ou mesmo a alguns crimes comuns, poderia ser submetida a esses atos selvagens. Nassau pede que as denúncias dos presos não sejam levadas em conta pelos novos administradores, porque elas seriam feitas apenas para evitar os maus tratos.

Outra forma de garantir a distância das tropas lusitanas era comprando o apoio da aristocracia. Escreve Nassau: "Convém (...) angariar e manter, por meio de favores e de dinheiro, alguns portugueses particularmente dispostos e dedicados (...) dos quais possam vir a saber em segredo os preparativos do inimigo". Os padres eram particularmente bem cotados - não só por sua ampla influência junto à elite, como por aquilo que ouviam nos confessionários.

A marquesa e o suborno ao capitão francês

Membro do Corpo de Estrangeiros do Exército Brasileiro, o alemão Carl Schlichthorst passeava em 1825 próximo à alfândega, no centro, quando foi abordado pelo capitão de um navio francês. Ele queria ajuda para liberar sua embarcação, capturada no Rio da Prata com mercadorias ilegais e rebocada para o Rio de Janeiro. Schlichthorst era influente. Conhecia desembargadores. Já fora apresentado a D. Pedro I. O capitão, porém, pediu para que o acompanhasse ao palácio da Marquesa de Santos, a amante do monarca, em São Cristóvão.

"Expus-lhe minuciosamente o negócio do meu cliente e ela mandou que esperássemos na antessala a solução que seu mordomo nos comunicaria", escreveu o alemão em seu diário. A resposta veio logo: a marquesa analisaria o caso do francês - sem garantia de sucesso -, mas o favor custaria um conto de réis.

Schlichthorst surpreendeu-se com o preço: era uma fortuna, suficiente para comprar um sobrado na Rua Direita, atual Primeiro de Março, a mais valorizada via da cidade na época. O francês, porém, não achou a quantia exagerada. Prometeu leva-la no dia seguinte, quando a entregou diretamente à marquesa.

Na saída, o mordomo do palácio pediu para que Schlichthorst o acompanhasse até o seu quarto.

O mordomo deu 50 mil réis ao militar alemão, explicando-lhe que era praxe da casa dar 5% ao intermediário de qualquer negócio - conta o historiador Nireu Cavalcanti. E ainda lhe disse para trazer novos clientes sempre que pudesse. Não se sabe se a marquesa de fato interferiu no caso, mas, se o fez, muito provavelmente ela conseguiu liberar o navio.

O choque de Schlichthorst não durou muito tempo. Aceitou sua comissão e ainda ganhou uma dúzia de garrafas de vinho Bordeux do capitão francês pelos serviços prestados.

Outras acusações de suborno já foram feitas à amante de D. Pedro I. O primeiro encarregado de negócios dos EUA no Brasil, Condy Raguet, reuniu pelo menos quatro casos, mostrando o tamanho de sua influência sobre o imperador que, aparentemente, nunca soube das negociatas da marquesa.

Pedágio de verdade e obras de ficção

Depois de toda a tempestade era a mesma coisa: os caminhos que cortavam os atuais bairros do Flamengo e Botafogo ficavam intransitáveis. As poças e desníveis desafiavam carroças, além de tornar impraticável o trânsito de pedestres. Três personagens da elite carioca viram na lama uma oportunidade de negócio. Os comerciantes Joaquim José Pereira de Faro e Inácio Raton e o engenheiro Pedro de Alcântara Bellegardo uniram-se no Catete e criaram a Companhia para Melhoramentos da Estrada de Botafogo.

Em novembro de 1839, o trio passou por cima da Câmara de Vereadores - que deveria ter opinado sobre o processo - e conseguiu aprovar diretamente no Ministério do Interior o seu contrato de trabalho. A missão: fazer melhorias nas atuais ruas Marquês de Abrantes e Senador Vergueiro, deixando-as com 13,2 metros de largura e calçadas em um dos lados, e também na praia de Botafogo, até a altura da atual São Clemente. As vias deveriam ser drenadas e sempre deixadas em perfeito estado de circulação. Os recursos viriam da exploração de pedágio na ligação entre Catete e Botafogo.

Logo depois da assinatura do contrato, as guaritas para cobrança de pedágio foram instaladas, próximo de onde hoje é a Praça José de Alencar - destaca Nireu Cavalcanti. A taxa era de 40 réis por animal e de 80 réis para carros de eixo móvel. O prazo da concessão era de 30 anos, renováveis.

Dezenove anos depois, no entanto, poucas mudanças eram notadas - com exceção de um ou outro remendo, que se provaram ineficientes depois de chuvas mais rigorosas. Só pedágio funcionava exemplarmente, o que enfureceu a população.

Um abaixo-assinado foi encaminhado à Câmara de Vereadores, que, após a avaliação de um engenheiro, cancelou o contrato - relata Nireu. A companhia prometeu fazer um modelo para as ruas do Rio, mas as calçadas não saíram do papel e os carros continuavam atolando nos buracos. Os empresários ficaram ofendidos com as acusações contra sua eficiência e contrataram os melhores advogados da cidade. Acabaram conseguindo uma indenização pelo rompimento do acordo. Nada fizeram, mas ganharam uma bela indenização.

O provedor corrupto de Goiás

Um grande intelectual, autor do primeiro livro impresso no Rio. Um dos maiores presidentes da Câmara de Vereadores até então - esteve à frente da Casa entre 1744 e 1750. Quando avaliado por 90 testemunhas da elite da cidade, no fim de seu mandato, não faltaram predicados para o bacharel Luiz Antônio Rozado da Cunha, arauto da ética na política. Oito anos depois, assumiu a provedoria da Fazenda Real de Goiás, ainda reconhecido pela lisura e competência com que despachava processos.

Em sua nova etapa profissional, no entanto, Luiz Antônio incumbiu-se de destruir a própria fama. Na remota capitania goiana, envolveu-se em esquemas de desvio de ouro, que "sumia" durante sua pesagem na Alfândega, e na venda de animais a preços exorbitantes para transportes e mineração, um negócio vedado a funcionários públicos.

Luiz Antônio exerceu o cargo de provedor em Goiás por três anos. No fim deste período, houve um processo sigiloso para análise de sua gestão, conduzido pelo guarda-mor local, em que ele acabou denunciado como corrupto e participante de quadrilha - destaca Nireu Cavalcanti. Além dele, estavam envolvidos o ouvidor, o tesoureiro e o escrivão da Fazenda Real, além do capitão-mor, de vereadores e alguns padres. Alheio às denúncias, o provedor voltou ao Rio em 1761, pronto para retornar  a Portugal, sua terra natal. Foi preso logo que chegou à Praça XV pelo governador da capitania do Rio e seu amigo, Conde de Bobadela.

O provedor fez uma administração maravilhosa no Rio e, quando chegou a Goiás, transformou-se em um grande corrupto e logo conseguiu o seu lugar na quadrilha local - destaca Nireu. Foi uma mudança estranhíssima.

Texto de Renato Grandelle
Jornal O Globo

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