Durante dois anos, morei com uma amiga que costumava dizer que, se eu entrasse no apartamento com mais um animal de estimação, ela sairia. Quando trouxe para casa uma composteira com 170 minhocas e o desafio de passar um mês sem produzir lixo, sorri ao imaginar como ela reagiria se ainda morássemos juntas. A ideia de tentar viver gerando a menor quantidade possível de resíduos por um mês foi inspirada na filosofia do lixo zero. Segundo essa linha de pensamento, é preciso repensar hábitos para reduzir a produção de material descartável não reciclável, aquele que acaba em aterros e lixões. Quando a ideia da reportagem surgiu, imediatamente me ofereci para o desafio.
No Brasil, o lixo cresceu com a afluência da população. Segundo o último Censo, divulgado no final do ano passado, o índice do lixo recolhido pelas prefeituras passou de 77% em 2000 para 93% em 2010. Um estudo da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), divulgado em maio, revela que dos quase 62 milhões de toneladas de lixo geradas em 2011, mais de 23 milhões de toneladas seguiram para lixões e aterros, com riscos de contaminação ambiental. Parte do material decomposto se infiltra no solo e pode chegar ao lençol freático. Também produz gases e atrai animais, como ratos e urubus. “Com o aumento do poder de compra, houve o crescimento da quantidade de lixo”, afirma Carlos Silva Filho, diretor executivo da Abrelpe. Cada brasileiro gera em média 381 quilos de material descartado por ano. É mais de 1 quilo por dia. Ainda é menos que os 2 quilos anuais de um americano. Mas estamos caminhando nessa direção. E essa rota pode ser insustentável. Não há nem espaço disponível para receber tanto lixo nem fontes para produzir toda a matéria-prima que exigiremos. “Algum dia, teremos de aprender a reutilizar tudo o que produzimos”, diz Silva Filho.
A filosofia do lixo zero já é seguida por uma minoria engajada. Eles têm um estilo de vida regido por princípios sustentáveis politicamente corretos: não comem carne, usam bicicletas em vez de carros e evitam adquirir novas roupas e objetos desnecessários. Esse não é meu caso. Compro produtos industrializados, dirijo meu carro e nunca consegui fazer uma horta sobreviver por mais de um mês. Mas, desde que moro sozinha, a questão do lixo me incomoda. Apesar de passar a maior parte do dia fora de casa, a quantidade de resíduos que produzo semanalmente é grande. Quis descobrir até que ponto conseguiria mudar isso, sem precisar alterar radicalmente meu estilo de vida.
A preparação
Uma das melhores experiências do tipo foi protagonizada pelo jornalista britânico Leo Hickman. Ele passou um ano ecologicamente correto e narrou tudo no livro A life stripped bare (algo como A vida desnuda). A experiência dele, mais extrema que a minha, serviu de inspiração. Outros também adotaram o desafio do lixo zero. A americana Rose Brown, de 33 anos, decidiu guardar em casa tudo o que não conseguia reciclar ou transformar em adubo. Em três anos, mal conseguiu encher uma caixa com o lixo que sobrou. Questionada sobre como atingir esse feito, ela é enfática: “Temos muitas responsabilidades e obrigações. Reduzir o lixo tem de ser um jogo divertido”.
Ao contar para amigos e familiares meu desafio, tive receio de não ser nada divertido. A reação das pessoas foi drástica. Minha família perguntou se eu ganharia algum tipo de remuneração adicional por insalubridade ou se eu fora coagida a aceitar a tarefa. Um amigo apostou que me visitaria em um mês e encontraria minha casa soterrada por objetos fabricados com garrafas PET. Nada disso aconteceu.
O plano foi dividir o mês em duas experiências distintas. Nas primeiras duas semanas, eu separaria todo o material para o sistema de coleta seletiva de minha rua, feito pela prefeitura de São Paulo. Na segunda metade do mês, viveria como a maior parte dos brasileiros, sem coleta seletiva pública. Teria de levar meu lixo reciclável para um centro de coleta.
No começo, o principal problema foram as fezes do Hobbes, meu cachorro border collie. Durante os passeios com ele, sempre recolhi seus dejetos com sacolas plásticas. Descobri que, no exterior, existem sacos feitos de um tipo de plástico que dissolve na água e pode ser jogado no vaso sanitário. Segundo Eduardo Van Roost, presidente da Res Brasil, empresa que importa a matéria-prima para a fabricação de plásticos, o produto está começando a chegar por aqui. “Mas custa 30 vezes mais que o plástico comum”, diz.
Outra dificuldade foi descartar meu telefone sem fio quebrado. Por seus componentes eletrônicos, não poderia ir para a reciclagem convencional. Na composição desse tipo de produto, existem metais pesados, como bário e chumbo, que ficam para sempre no ambiente e podem afetar nossa saúde. Para reciclar o telefone, teria de levar a uma cooperativa especializada. “Desmontamos os produtos, e cada um de seus componentes é encaminhado a alguma indústria que aproveite esse material”, afirma Alex Pereira, presidente da Coopermiti, que recicla lixo eletrônico.
Na segunda metade do mês, precisei me preparar para levar o lixo a um centro de coleta. Minha primeira estratégia, a preguiça, foi juntar todos os produtos numa única lixeira, para depois separá-los por tipo de material. Passados alguns dias, na hora de fazer essa triagem, tive nojo do lixo envelhecido. Aprendi que, na hora do descarte, aquilo é apenas uma embalagem usada por mim. No dia seguinte, virou o lixo repugnante de alguém. Na semana seguinte, passei a separar imediatamente cada material num saco diferente.
Descobri truques em blogs como o The Zero Waste Home, da francesa Béa Johnson. Na hora de comprar comida, ela leva ao mercado potes de vidro e sacolas e compra tudo o que puder a granel. Não consegui fazer compras desse jeito, já que costumo ir a lojas de grandes redes. Mas a ideia de comprar direto do produtor me pareceu boa. Passei a frequentar uma feira orgânica.
Antes da experiência, já tentava usar sacolas reutilizáveis, mas sempre as esquecia em casa. Passei a mantê-las no porta-malas do carro e na bolsa. Ao comprar itens industrializados, criei o hábito de observar se as embalagens eram econômicas e recicláveis. “Quando um pacote não é facilmente reciclável, orientamos o fabricante a mudar sua composição”, afirma André Vilhena, diretor executivo do Compromisso Empresarial para Reciclagem.
Minhocas aliadas
Para não jogar fora o lixo orgânico, comprei uma composteira na Morada da Floresta. No começo, pensar que dividia meu apartamento com 170 minhocas foi aflitivo. Nunca tive medo desse bicho. Mas também não morava com dezenas deles. Durante a primeira noite, acordei com a sensação de algo rastejando em meu pescoço. Paranoia. Levantei e fui checar a caixa. Estava perfeitamente fechada. Ao longo do mês, nenhuma minhoca escapou.
Na primeira semana da composteira, juntei todo o lixo orgânico no cesto da pia da cozinha. Quando fui alimentar as minhocas, percebi que teria de picar os restos, mas eles já estavam podres. E nojentos. Decidi então guardar o lixo orgânico previamente picado num pote na geladeira, para não apodrecer. Também demorei para acertar a quantidade de serragem para impedir que o lixo atraia insetos. Na terceira semana, a área de serviço ficou repleta de moscas pretas, pousadas em todos os lugares, como no filme Os pássaros, de Alfred Hitchcock. Fiquei horrorizada. Joguei uma boa camada de serragem na composteira e desinfetei ao redor. Outra surpresa foram as larvas. Surgiram porque joguei restos de carne no minhocário. (O ideal para não produzir resíduo seria virar vegetariana.) Quando abri a tampa e vi as larvas brancas, dei um grito. Meu namorado precisou retirá-las da caixa, enquanto choramingava. Ao longo do mês, a relação com a composteira melhorou. Quando visitas vinham em casa, logo perguntavam pelas minhocas. Uma amiga até pediu para eu batizar a minhoca mais bonita com o nome dela.
Higiene complicada
Para reduzir a produção de lixo, substituí os lencinhos umedecidos que usava para limpar as patas do cachorro por um xampu a seco. Mudar minha higiene pessoal foi mais complicado. Uma pessoa gasta em média 24 rolos de papel higiênico por ano. Como não dá para reciclar papel sujo, o melhor seria mandá-lo descarga abaixo, mas no meu prédio não pode. Outra opção seria usar água e sabão para a limpeza. Depois de pensar, decidi que o papel higiênico seria minha exceção. (Leia o quadro com soluções.) Absorventes foram outro desafio. Ao longo da vida, cada mulher usa cerca de 15 mil deles, e todos vão para o lixo. Quando busquei a composteira, Cláudio Spínola, diretor executivo da empresa, sugeriu os absorventes ecológicos, feitos de pano. São pequenos e estampados. Diferentes daqueles usados pela minha bisavó. Achei o contato com a pele confortável. Lavá-los na máquina não foi traumático. Na embalagem vinha um folheto explicativo, que sugeria usar a água onde os absorventes ficaram de molho para regar as plantas e “devolver sua energia à natureza”. Tenho somente um cacto, que rego uma vez por mês. Decidi que eu e ele estávamos bem sem a devolução da minha energia.
O que ficou
Quando o mês do experimento acabou, minha primeira reação foi de alívio, por poder fazer tudo do meu jeito. Mas logo percebi que adquirira muitos hábitos. Agora, parece que jogar algo reciclável no lixo comum é tão errado quanto seria arremessar o objeto pela janela do carro. Não fiquei com a composteira porque quase não cozinho e produzo pouco lixo orgânico. Quando eu tiver uma estrutura familiar que inclua mais bocas para alimentar, trarei de volta as minhocas. No fim de seu livro, Leo Hickman afirmou que seu desafio estava apenas começando. Não serei tão otimista, pois não me sinto pronta para dar um passo além e virar vegetariana ou abandonar o papel higiênico. Mas aprendi que não é preciso tomar atitudes drásticas como essas para diminuir meu impacto no meio ambiente.
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