segunda-feira, 23 de julho de 2012

Te Contei, não ? - Lucíola




Publicado em 1862, Lucíola é o primeiro romance de José de Alencar em que o homem e mulher se confrontam num plano de igualdade, dotados de peso específicos e capazes dum amadurecimento interior inexistente em seus outros personagens.

Ambientado no Rio de Janeiro, o romance é narrado em 1ª pessoa. Paulo, narrador-personagem, assume uma posição fundamental na narrativa, pois estando envolvido na ação, ele tem uma visão parcial (unilateral) dos acontecimentos que narra, tornando assim os gestos, as ações e as palavras dos personagens ambíguas, duvidosas e de significados imprecisos.

O romance é fruto de diversas cartas que Paulo envia a uma senhora conhecida, contando seu relacionamento com Lúcia. O título dado à coletânea de cartas, “Lucíola”, é uma analogia entre o inseto Lucíola e a personalidade de Lúcia. O narrador compara o “inseto noturno que brilha em meio à lama” à “pureza da alma de Lúcia, que ainda existe apesar de ela estar num abismo de perdição”.

Paulo Silva, homem provinciano recém formado bacharel, conta que conheceu Lúcia no dia em que chegou ao Rio de Janeiro. Fica impressionado com sua beleza e seus modos ingênuos. No dia seguinte é apresentado a ela por seu amigo Dr. Sá, durante a festa de Nossa Senhora da Glória. Nesta ocasião é que fica sabendo que Lúcia é a prostituta mais requintada e disputada do Rio do Janeiro. O narrador, no entanto, fica intrigado com o jeito da meretriz: ela tem uma “expressão cândida no rosto e a graciosa modéstia do gesto.

Alguns dias depois, Paulo vai à casa de Lúcia, desejoso de possuí-la em seus braços. Depois de uma longa e animada conversa, Paulo percebe que há certo pudor na cortesã: seu perfume é suave e, com um simples despontar da curva do seio num movimento, ela arruma o vestido discretamente, enrubescendo. Todas essas circunstâncias levam Paulo a duvidar se ela é mesmo quem dizem ser. Intrigado, comenta o ocorrido com Dr. Sá, seu amigo, que lhe adverte que ela é excêntrica: só se entregava a quem queria e a quem lhe desse muito dinheiro.

No dia seguinte, Paulo retorna à casa de Lúcia, certo de que aquela farsa teria de acabar. Tinha de possuir aquela mulher de qualquer jeito. Ele a assedia, pelo que ela enrubesce novamente e derrama duas lágrimas. Paulo irrita-se com aquele gesto e afirma aborrecidamente que ela não esperasse cortejos, pois ele já sabia que tipo de mulher ela era. Lúcia reage e entrega-se completamente a ele, que fica perplexo diante daquela mulher totalmente ardente e desfigurada. Quando ele vai pagar, ela não aceita. Sem entender o motivo disso, ele vai embora.

Pouco tempo depois, Paulo vai assistir a uma ópera com Cunha, amigo do Dr. Sá e lá avista Lúcia observando-os do camarote. Ao perceber seu interesse por Lúcia, Cunha passa a dar detalhes do comportamento excêntrico da cortesã. Paulo nota o quanto é admirada, pois recebe presentes de vários homens. Convence-se, então de que ela é prostituta por prazer.

Após a ópera, vários homens e Paulo reúnem-se à casa de Sá, onde Lúcia e outra amiga do ramo vão fazer uma “apresentação particular” para os homens da casa. Ao reparar a presença de Paulo, Lúcia diz não estar preparada. Diante disso, todos lhe olham admirados, perguntando se está apaixonada. Paulo dá uma grande gargalhada de deboche. Então Lúcia ergue a cabeça orgulhosamente e assume seu lado “Lúcifer”, como é chamada pelos homens. Sobre à mesa e começa a dançar, despindo-se. Todos os homens aplaudem extasiados menos Paulo, que foge irritado para o jardim. Lúcia vai ao encontro dele, que indaga porque ela descia tão baixo, mas ela desaba num choro convulsivo. Paulo sente dó dela e percebe que a moça tem uma alma nobre. Neste momento eles se beijaram apaixonadamente e vão para a casa dela, onde passaram a noite. A partir daí, passam a se encontrar todos os dias. Neste ponto do romance, a narrativa assume a idealização romântica do amor: tardes calmas, leituras bíblicas…

A explicação para esse comportamento contraditório de Lúcia, ora anjo, ora demônio, está na revelação do passado – elemento condutor da narrativa e critério de revelação psicológica dos personagens. Em “Lucíola”, a situação é mais complexa. Quando Maria da Glória (seu nome verdadeiro) tinha apenas 14 anos, houve um surto de febre amarela no Rio de Janeiro e toda sua família caiu doente. Em busca de ajuda, foi obrigada a se prostituir: o velho Couto foi quem a iniciou. Quando o pai soube, expulsou-a de casa. Sozinha, foi morar com uma cafetina, que a introduziu “na sociedade masculina”, trocando de nome com uma amiga morta: Lúcia. A pureza da infância e a brutalidade fria com que fora violada sua honra em defesa da saúde do pai determinam o comportamento de Lúcia.

Com a morte dos pais, tudo o que ganhava era destinado à preparação do dote de sua irmã, Ana, que passou a estudar num colégio interno. Desconhecendo as razões de Lúcia, Paulo também apresenta um comportamento paradoxal: ora deseja possuir violentamente essa mulher, ora propõe-se a respeitá-la. Dá-lhe liberdade, mas a que só para si; vê nela uma menina pura de 15 anos e uma refinada e excêntrica meretriz. Influenciado pela desconfiança inoculada nele pela sociedade, através de seus representantes Sá, Cunha e Couto, aprenderá a desconfiar também, levado pelo orgulho e medo de se expor ao ridículo para depois reconhecer seu erro e pedir perdão.

Segundo Antonio Candido, “a luxúria com que Lúcia subjugava os amantes funciona como recurso profissional: uma espécie de atordoamento, autopunição e reforço de sentimento de culpa”. Ao apaixonar-se por Paulo, logo que este chega ao Rio, Lúcia passará por um processo de transformação que dará lugar à adolescente pura ao passo que vai eliminando a impudica meretriz. É um processo de redenção, começando pela negação do prazer carnal – recusando outros homens para entregar-se só a Paulo – e depois a abstinência sexual até a negação de um simples beijo. Só assim poderá eliminar a ardente cortesã e fazer renascer a Maria da Glória angelical. A purificação, neste caso se dá através do amor espiritual, que não pode ser profanado pelo desejo físico.

Assim, o desenvolvimento da narrativa nos reporta à concepção do amor romântico, responsável pelo próprio desfecho do romance. Lúcia/Maria da Glória consegue se purificar do seu passado, entretanto a sociedade não perdoa: não basta Lúcia refugiar-se longe da cidade e morar com a irmã: sua presença é uma afronta à sociedade. Lúcia engravida de Paulo e fica desesperada, pois considera seu corpo impuro para gerar uma vida. Simbolicamente, a própria rejeição da mãe e da sociedade aborta a criança, mas Lúcia não aceita tomar o remédio para expelir o feto morto. Já no leito de morte, recebe o juramento de que Paulo cuidará da integridade de sua irmã, Ana. Para ela a morte é uma bênção: só assim poderá purificar totalmente seu do espírito.


Por Paula Perin dos Santos



Fontes
CACCESE, Neusa Pinsard. A Purificação Através do Amor. In: Lucíola – José de Alencar. 27ed. São Paulo, Ática, 2001, p. 03-6.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 4ed. São Paulo, Martins, 1971, 2º Vol, p. 222-3

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