“Atingir os pontos nevrálgicos do leitor”. Este parece ser um dos principais objetivos da obra de Machado de Assis, conforme disse um dos seus grandes intérpretes, Augusto Meyer, ainda na década de 1930. O diálogo direto com quem lê é, de fato, uma obsessão machadiana, e atravessa praticamente toda a sua obra, da crônica ao teatro, do conto ao romance. Mas é principalmente nos romances que o leitor ocupa um lugar central e dramático.
A colocação do leitor como problema crucial da escrita coincide com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881. O romance que alterou os rumos da literatura produzida no Brasil, colocando-a num outro patamar de qualidade, começa, não por acaso, com o célebre prólogo “Ao leitor”. Não se trata de um prólogo como outros, assinado pelo autor Machado de Assis, ou pelas iniciais M. A., que antecedem o início da narração ficcional. Esse prólogo já aparece integrado à ficção e vem assinado por Brás Cubas, narrador e personagem principal do romance. A partir dali, o leitor torna-se figura fundamental e matéria constitutiva da ficção de Machado de Assis.
Essa nova disposição (ou será indisposição?) em relação ao leitor fica clara nas palavras iniciais do romance:
AO LEITOR
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. [...]
AO LEITOR
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. [...]
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
BRÁS CUBAS.
Inaugura-se aqui, com a ameaça do piparote, a agressividade extrema no trato com os interlocutores. Estes não só serão contrariados em suas expectativas, como já acontecia nos romances anteriores, mas freqüentemente chamados de obtusos, teimosos, afoitos, sensaborões, caluniadores etc. Machado renovava o romance brasileiro introduzindo em sua prosa o leitor malicioso, imprestável, preguiçoso, impaciente... No conjunto, essa galeria formava um público de qualidade duvidosa e numericamente exíguo, o que também representava uma inovação no plano ficcional.
Ao perguntar quantos seriam – Cinqüenta? Vinte? Dez? Cinco? –, Brás Cubas (e quem sabe o próprio Machado?) chamava a atenção para uma questão crônica na literatura brasileira: o público reduzido e a falta do hábito da leitura. A situação desfavorável à ampla circulação das letras havia muito era intuída pelos escritores, que em cartas, crônicas e artigos reclamavam da pouca repercussão dos seus livros. Muitas vezes atribuíam isso à indiferença do público, que preferia os livros estrangeiros, sobretudo os franceses. Em certa medida tinham razão, pois a elite era capaz de ler também em francês. Entre um livro francês e um livro brasileiro que quase sempre tinha na França o seu modelo, muita gente não vacilava e preferia ir direto ao modelo.
Mas o problema não se resumia ao gosto pelo livro francês. Tinha causas mais estruturais que por muito tempo permaneceram desconhecidas, já que não havia dados e informações que dessem uma dimensão real do que ocorria. Foi justamente enquanto Machado produzia sua obra que se revelou que mais de 80% da população brasileira não sabia ler. Isso se deu com o primeiro recenseamento geral do Império, feito em 1872, mas cujos resultados só seriam divulgados em agosto de 1876, quando Machado já publicava seu terceiro romance, Helena, e quatro anos antes da publicação das Memórias póstumas, aos pedaços, na Revista Brasileira.
O censo indicava que somente 16% da população brasileira era alfabetizada. A porcentagem tornou-se ainda menor em 1890, quando se apurou que 14,8% da população sabia ler e escrever. Ainda segundo o censo de 1872, apenas 12 mil pessoas freqüentavam a educação secundária e havia oito mil bacharéis no país, número ínfimo diante dos quase 10 milhões de habitantes.
Os números caíram como um raio sobre o público letrado. De Norte a Sul, as reações misturavam indignação e surpresa, resumidas na seguinte frase: “Somos um povo de analfabetos!” O próprio Machado escreveu uma crônica sobre os resultados do censo, questionando a representatividade das leis e dos discursos num país em que a esmagadora maioria da população estava excluída de qualquer processo que envolvesse uma relação direta com a palavra escrita.
Nesse panorama verdadeiramente desolador, quantos seriam os possíveis leitores de um romance? E qual seria a qualidade deles?
Basta verificar o modo como a obra de Machado de Assis circulou e foi recebida para se ter uma idéia das respostas possíveis a essas perguntas.
Não resta dúvida de que Machado foi um escritor festejado por seus contemporâneos antes mesmo de publicar Memórias póstumas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), hoje amplamente reconhecidos como suas obras-primas. Já nas décadas de 1860 e 1870, quando ainda não estreara como romancista, Machado era muito respeitado como crítico, poeta e autor de teatro. Por outro lado, sua obra não atendia às expectativas do tempo e não se adequava aos modelos literários mais prestigiosos daquele momento.
A princípio, foi entendida como um grande capítulo de negativas, faltando a ela colorido de linguagem, movimentação de enredo, descrições de paisagens locais, comprometimento com as questões brasileiras etc. Essas eram opiniões generalizadas entre os homens mais inteligentes e informados do tempo, como Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo. De maneiras diferentes, todos expressaram desconforto com a obra, que não sabiam como classificar.
Tudo indica, portanto, que, além de mal compreendido, Machado foi também pouco lido. Para além dos críticos literários, não sabemos quase nada sobre o modo como sua obra teria sido lida por gente comum. Até hoje não veio à luz nenhuma carta de leitor ou leitora comum endereçada a Machado ou qualquer correspondência publicada nas seções de cartas das dezenas de jornais e revistas em que publicou boa parte da sua obra ao longo de toda a vida.
A primeira versão de Quincas Borba, por exemplo, foi publicada num jornal de modas voltado para o público feminino, chamado A Estação. A publicação do romance durou cinco anos e foi toda acidentada, com várias interrupções. Apesar disso, estranhamente não há registro de reclamações ou pedidos de esclarecimento sobre essas interrupções. Helena, que foi dos romances mais populares de Machado, teve uma primeira edição de 1.500 exemplares e só chegou à segunda edição em 1905, depois de 29 anos!
Vale lembrar que Machado não era um entre vários grandes escritores em atividade, mas o grande escritor brasileiro, uma espécie de chefe da literatura nacional, que havia muito ocupava os lugares mais proeminentes da vida cultural brasileira.
Claro que havia a publicação em jornais e revistas, e que os livros, então muito caros, passavam de mão em mão. Mas quantos poderiam formar esse público silencioso, que não deixou marcas de sua existência? É isso que Machado, por meio de Brás Cubas, parece perguntar a si mesmo e a seus leitores no famoso prólogo.
E a resposta não parece ter sido muito animadora.
Memórias póstumas de Brás Cubas foi recebido com um silêncio quase sepulcral. Apenas três notas e três pequenos artigos saudaram a publicação do romance. Um tom de perplexidade perpassa as indagações dos críticos: Será um romance? Um livro de filosofia mundana? Uma autobiografia?
O próprio Machado parece ter esmorecido logo depois da publicação desse livro, a ponto de se queixar em carta ao cunhado, Miguel de Novais. Na resposta, datada de julho de 1882, o cunhado tentava animá-lo:
“Parece-me não ter razão para desanimar e bom é que continue a escrever sempre. Que importa que a maioria do público lhe não compreendesse o seu último livro? – há livros que são para todos e outros que são só para alguns – o seu último livro está no segundo caso e sei que foi muito apreciado por quem o compreendeu – não são, o amigo sabe-o bem, os livros de mais voga os que têm mais mérito. Não pense nem se ocupe da opinião pública quando escrever – A justiça mais tarde ou mais cedo se lhe fará, esteja certo disso”.
O notável é que Machado, em vez de tapar o sol com a peneira ou reclamar pelos cantos, como fizeram muitos escritores antes e depois dele, soube encarar a carência e o despreparo dos leitores, trazendo o problema da comunicação literária para o centro da sua ficção. Ao fazer uma literatura que coloca o leitor e a leitura como questões fundamentais, Machado nos convida à reflexão sobre as condições difíceis da produção e da difusão da literatura no Brasil, o que vale tanto para o século XIX como para os dias de hoje. Em pesquisa recente do Instituto Pró-Livro, 45% da população declara não gostar de ler, e quem lê compra em média 1,2 exemplar por ano.
Reler Machado de Assis pode nos ajudar a construir uma perspectiva histórica para a questão da leitura, que permanece como problema urgente e nevrálgico, a ser enfrentado sem subterfúgios.
HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES é professor da USP e autor do livro Os leitores de Machado de Assis – o romance machadiano e o público de literatura no século 19 (Nankin/Edusp, 2004).
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